A ILUSÃO DO AGORA

Muito se diz atualmente sobre a importância de vivermos no presente, sobre a importância do “aqui” e “agora”. Mas será que há, na verdade, um “agora”? Se olharmos com muito cuidado para o que exatamente é o “agora”, iremos talvez concluir que ele não existe. Talvez vejamos que não há um “presente”. A princípio, isto parece absurdo: eu tenho pensamentos agora, e eles acontecem para mim agora.Toda a experiência que está acontecendo está, obviamente, acontecendo agora. Eu estou aqui ; você está aí. Posso falar com você; você pode falar comigo.

Não há dúvida de que nos consideramos mutuamente reais. É tudo muito simples. Não obstante, a realidade é diferente para cada um de nós. Do meu ponto de vista, vejo uma coisa; do seu, você vê outra. Do meu ponto de vista, eu sou o sujeito da experiência e você é o objeto. Para você, evidentemente, ocorre o inverso. Nenhum de nós vive exatamente a mesma realidade. Mesmo se tentássemos duplicar, com absoluta precisão, as circunstâncias de uma determinada experiência, nunca seria exatamente a mesma coisa. Se pudéssemos “dar” a uma outra pessoa a nossa experiência, a experiência não seria a mesma para ela, pois ela a veria de sua própria perspectiva. Nossas experiências, nossa realidade, dependem da nossa consciência individual. E até que ponto essa consciência é estável? Drogas, doenças, febre, calor, fadiga, podem todos afetar profundamente nossa mente. Podemos ver dragões ou figuras coloridas, ou a sala se mexendo. Sabemos que essas experiências não são reais… mas o que é real? Nossas sensações, percepções, pensamentos, reconhecimentos, lembranças, experiências, sentimentos, conceitos, emoções: todos são organizados sob forma de um padrão, do mesmo modo que a estrutura de uma flor é um padrão. Quando desmembramos uma flor para ver como é feita, ela deixa de ser uma flor. Igualmente, quando dividimos nossa experiência em suas “partes”, ela já não é mais a mesma experiência. Nossa experiência habitual se encaixa dentro de um padrão dualista: dividimos o mundo entre aquele que tem a experiência (eu, o sujeito) e aquilo que é experienciado (ele, o objeto). Assim que temos uma determinada experiência, o eu (o sujeito) pensa sobre a experiência (o objeto), ou a considera de algum modo. Mas nossos pensamentos são apenas reflexos da experiência; não podem ser a própria experiência. Em vez de formarem “estruturas” isoladas de experiência, nossas experiências aparecem sobrepostas uma às outras. Ao tentar classificar e arranjar nossas experiências, criamos apenas uma confusão de camadas e divisões. Pode ser que culpemos as complexidades da vida moderna por essas confusões. Assim, tentamos simplificar as nossas vidas, abandonando as nossas responsabilidades para viver no “presente”. Mas este viver no “presente” acaba sendo ainda uma tentativa de agarrar a experiência, ainda um sujeito que examina um objeto. As nossas próprias idéias sobre o que significa estar no “presente”, ou estar aqui “agora”, criam raízes e nos enredam com suas complexidades. Onde está essa mente, a minha mente na qual acredito que as ideias e as experiências ocorram? Os pensamentos existem; nós temos um senso do presente; nós somos dotados de consciência. Mas, quando tentamos determinar com precisão a experiência que estamos de fato tendo, não conseguimos encontrar nada em nossa descrição da experiência que seja real mesmo. O que, na verdade, encontramos, não é nunca a realidade da experiência, mas apenas um conjunto de conceitos que formamos sobre a nossa experiência. Quando tentamos viver no “presente”, partimos para ir além dos conceitos, além do tempo, além das nossas experiências habituais; mas tudo o que fazemos com nossa zelosa antecipação é reforçar nossa mente dualista. Como é possível, então, ir além desta superfície ou plano relativo, quando até mesmo o desejo de ir além acaba nos impedindo de fazer isso? O primeiro passo é perceber que todas as coisas que pertencem ao plano relativo, inclusive a linguagem, as idéias e conceitos, são formas iguais às nuvens no céu. Elas parecem sólidas; têm form atos diferentes; elas se movimentam; e, no entanto, não são tão diferentes do céu em que flutuam . Do mesmo modo, criamos formas com as nossas diferentes experiências, por meio de emoções, imagens e conceitos. Desenvolvemos “enredos” que se assemelham aos dragões de nuvem que deslizam pelo céu. Geralmente, consideramos essas experiências “iguais às nuvens” como se fossem objetos reais, separados de nós. Mas, quando compreendemos que são manifestações de superfície, podemos relaxar e entrar em contato com o espaço sutil que se encontra além dos conceitos e emoções “semelhantes às nuvens”, o espaço no qual não há dualidade alguma entre sujeito e objeto. A princípio, é difícil aceitar que esse espaço vazio exista. Como não temos desenvolvido o tipo de percepção que é necessário, temos dificuldade em entender a experiência. Por isso, precisamos, primeiramente, adquirir uma compreensão intelectual; depois, podemos, por meio da meditação, nos abrir para a experiência efetiva. Por um lado, a compreensão intelectual apóia a experiência; por outro, a experiência inspira uma compreensão mais profunda. Elas se aprofundam juntas, em apoio mútuo. Nosso entendimento intelectual é um mecanismo de testagem, um mecanismo que cria um meio de provar coisas de forma lógica. Essa faculdade é importante —mas, a partir de um determinado ponto, ela se torna cada vez menos confiável, p orque os conceitos e a lógica só nos levam até uma certa distância.

Somente a experiência pode nos levar além das imagens, além dos conceitos e palavras, além do tempo. Mas isso não é a nossa idéia habitual de experiência… é atenção pura. A meditação nos ajuda a deixar que os nossos conceitos e idéias cedam lugar a essa atenção pura e aberta. Na meditação, fazemos nosso contato mais íntimo com o nosso lado experienciai, onde se encontra a iluminação, a consciência superior. Quando passamos diretamente para dentro de um momento qualquer, quando dissolvemos as formas ou “nuvens” dos conceitos e cedemos lugar à experiência pura, descobrimos nosso grande recurso – o espaço iluminado. Podemos garimpar nossa experiência para encontrar esse grande tesouro que se encontra dentro de cada pensamento. Quando essa compreensão emerge, tudo passa a fazer parte da meditação. Nós nos centramos no momento imediato da experiência e, no entanto, ainda participamos de suas formas externas, usando conceitos, gestos etc., para manifestar nossa experiência interior. Essa compreensão é uma verdadeira integração, uma ligação autêntica de todo o nosso ser com a realidade da experiência, com o “agora” que não é limitado pelo tempo ou pelo espaço. É possível descobrir essa “realidade”, esse “agora”, durante a meditação. Nós a encontramos no espaço que há tanto dentro dos pensamentos como entre eles; esse espaço é um “terreno” silencioso e sereno que constitui a base da consciência. Esse “terre no ” é totalmente receptivo; todas as informações provenientes dos nossos sentidos se assentam aí, como sementes semeadas num campo. As “sementes” incluem todas as experiências e toda a atividade mental, positiva e negativa; todas são plantadas nesse “terreno”. Quando as condições estão propícias, as “sementes” brotam. Esse brotar, esse ganhar vida é a ação do carma. O “terreno”‘ para cada um de nós é o mesmo. O carma, então, é o impulso que transforma esse terreno da consciência na consciência singular de cada indivíduo, dando lugar à consciência individualizada do samsara. A consciência, quando tomada isoladamente, não possui quaisquer características determinantes. Podemos dizer que este ó o sou aspecto “nirvânico”. No entanto, podemos dizer o mesmo com relação à consciência “samsárica”… a única diferença é que, no plano samsárico, os pensamentos criam um dualismo, um senso de sujeito e objeto, e um senso de separação entre eles. Nosso “agora” convencional discrimina entre “esta” presença do agora e “aquela” presença do agora. Portanto, antes que possamos de fato vivenciar a “presença da atenção pura”, é necessário transcender esses conceitos e esse processo de discriminação. Até lá, não poderemos nunca saber, com certeza, se a nossa consciência está revelando a realidade ou a ilusão. Há uma história sobre um vaqueiro que desejava aprender a meditar. Estava, porém, encontrando dificuldades, porque havia passado toda a sua vida guardando vacas, e conhecia apenas os costumes dos animais do campo. Um dia, seu mestre, Nagarjuna, perguntou-lhe como sua prática de meditação estava progredindo. O vaqueiro respondeu que, sempre que tentava meditar, as caras das vacas entravam em sua mente. Nagarjuna, então, perguntou: “Será que você conseguiria pensar, de modo ainda mais vívido, no que vê? Você poderia praticar essa visualização por seis meses?” O homem respondeu que sim. Todos os dias, por oito horas, o vaqueiro se concentrava firmemente, visualizando a cara de uma vaca. Depois de seis meses, o rosto do homem ficou exatamente igual ao de uma vaca. Nasceram-lhe até mesmo chifres! Quando Nagarjuna retornou e disse ao vaqueiro que era tempo de deixar sua casa, o homem retrucou que não poderia, porque seus chifres eram grandes demais para passar pela porta. Nagarjuna, então, disse-lhe para meditar novamente do mesmo modo, mas para visualizar uma vaca sem chifres. Depois de alguns dias, os chifres desapareceram e o homem foi capaz de deixar sua casa. Nesse momento, Nagarjuna sentiu que o vaqueiro estava pronto para receber ensinamentos mais elevados. Este é o modo como a consciência opera. Pode criar uma ilusão e transformar o mundo em samsara. No entanto, a mesma consciência pode vazar a ilusão e o mundo é compreendido como nirvana. O meio para se realizar qualquer uma dessas duas coisas reside integralmente dentro de nós, e a escolha é unicamente nossa.

Tarthang Tulku

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