A “lógica” do Zen é o inverso radical da lógica filosófica

Um dos maiores mestres do Zen chinês, o Patriarca Hui Neng (sétimo século), foi interrogado por um discípulo sobre questão importante: “Quem herdou o espírito do quinto Patriarca?” (isto é, quem é, agora, o Patriarca?).

Hui Neng respondeu:
“Aquele que compreende o budismo”.
O monge insistiu:
“Então, a herdaste?”
Hui Neng disse:
“Não”.
“Por que não?”
“Porque não entendo o budismo”.

A estória tem o intuito de ilustrar o fato de que Hui Neng tinha herdado a tarefa do Patriarca ou o carisma de ensinar o puro Zen. Estava qualificado para transmitir a iluminação do próprio Buda a seus discípulos. Se Hui Neng tivesse proclamado possuir ensinamento autoritativo que tornasse essa iluminação compreensível aos que a não possuíam, estaria então ensinando algo diferente, isto é, uma doutrina sobre a iluminação. Estaria disseminando a mensagem de sua própria compreensão do Zen e, nesse caso, não despertaria os outros para o Zen dentro deles.

Estaria imprimindo nele o selo de seu próprio conhecimento e doutrina. O Zen não tolera isso, uma vez que seria incompatível com o verdadeiro propósito do Zen: despertar profunda conscientização ontológica, intuição sabedoria (Prajna) nos fundamentos do ser de quem é assim despertado. E, de fato, a simples tomada de consciência de prajna não seria pura, nem imediata, se fosse a consciência de que estamos entendendo prajna.
A linguagem utilizada pelo Zen é, portanto, em certo sentido, uma antilinguagem. E a “lógica” do Zen é o inverso radical da lógica filosófica. O dilema humano da comunicação está no fato de que não podemos nos comunicar ordinariamente sem palavras e sinais, mas, mesmo a experiência ordinária tende a ser falsificada pelos hábitos de verbalização e racionalização. Os instrumentos convenientes da linguagem nos permitem decidir de antemão o que pensamos que as coisas significam, e constituem uma tentativa para vermos as coisas apenas de um modo que se enquadre em nossos preconceitos lógicos e fórmulas verbais. Em lugar de ver as coisas e os jatos como realmente são, nós os vemos como reflexos e verificações de sentenças que previamente construímos em nossas mentes. Esquecemos com muita rapidez como simplesmente ver as coisas, substituindo nossas palavras e fórmulas de maneira a vermos somente o que se enquadra convenientemente em nossos preconceitos. O Zen utiliza a linguagem contra a própria
linguagem, para fazer estourar tais preconceitos e destruir a enganadora “realidade” existente em nossas mentes, para que possamos ver diretamente.

O Zen diz, como Wittgenstein dizia, “Não pense: olhe!”

Uma vez que a intuição Zen procura despertar uma consciência metafísica para além do ego empírico, que reflete, conhece, fala, essa conscientização deve estar imediatamente presente a si mesma e não sofrer a mediação do conhecimento conceitual, reflexo ou imaginativo. E, no entanto, longe de ser mera negação, o Zen é também inteiramente positivo. Ouçamos sobre este assunto o Dr. D. T. Suzuki:

“O Zen sempre tem em mira apreender o fato central da vida, que nunca pode ser colocado sobre a mesa da dissecação do intelecto. Para apreender o fato central da vida, o Zen se vê forçado a propor uma série de negações. Entretanto, a simples negação não é o espírito do Zen…”

(Daí, diz o Dr. Suzuki, os Mestres do Zen não afirmarem nem negarem; agem ou falam simplesmente, de maneira tal que o ato ou a palavra é um fato concreto regurgitando de Zen…) Continua Suzuki: “Quando o espírito do Zen é apreendido em toda a sua pureza, poder-se-á ver que coisa real é aquilo (no caso o ato de dar um tapa). Pois aqui não há negação nem afirmação, mas um simples fato, uma pura experiência, o próprio fundamento de nosso ser e de nosso pensamento. Toda a tranqüilidade e todo o vazio que se poderia desejar no meio da mais ativa meditação aí se encontra. Não se deixa levar por coisa alguma exterior ou convencional. O Zen tem de ser agarrado com as mãos nuas, sem luvas”*.

É nesse sentido que “o Zen nada ensina; apenas nos possibilita um despertar-nos e tornar-nos conscientes. Não ensina, aponta“**. Os atos e gestos de um Mestre do Zen não são “declarações”, como não o é o toque de um relógio despertador. Todas as palavras e todos os atos dos Mestres do Zen e de seus discípulos devem ser entendidos nesse  contexto. Geralmente, o Mestre está apenas “produzindo fatos”, que o discípulo pode ou não ver.

Muitas das estórias Zen que, em termos racionais, são quase sempre incompreensíveis, constituem simplesmente o toque de um relógio despertador e a reação de quem dorme. Geralmente, o adormecido atordoado responde ao chamado com um gesto que silencia o despertador e lhe permite pegar de novo no sono. Por vezes lhe acontece saltar da cama com um grito de surpresa por ser hora tão tardia. Outras vezes dorme apenas, sem nem mesmo ouvir o despertador!

Na medida em que o discípulo vê no fato um sinal de outra coisa, é por ele enganado. Pode o Mestre (por meio de outro fato qualquer) tentar conscientizá-lo a esse respeito. Com freqüência, é precisamente quando o discípulo percebe estar totalmente enganado que ele toma consciência de tudo o mais; principalmente, é claro, de que nada havia para ser tomado em conta senão o próprio fato. Que fato? Se sabemos a resposta, estamos acordados. Ouvimos o despertador!

Zen e as Aves de Rapina – Thomas Merton

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