Abordando mindfulness correta, Ṭhānissaro Bhikkhu fala sobre as quatros qualidades úteis no caminho, na meditação e mindfulness. Esse livro é uma jóia, merece ser lido e relido. Em poucas páginas consegue trazer um rico conhecimento do Budismo, da meditação e mindfulness. As perguntas e respostas no final dos capítulos são outra jóia rara.
Segue trecho:
O Buddha fala frequentemente de mindfulness como uma forma de proteção. A proteção que a mindfulness oferece é, basicamente, que ela o protege de fazer coisas inábeis e de pensar coisas inábeis. Ela o lembra do que é hábil e do que não é hábil, assim como também o lembra das várias técnicas que você tem para desenvolver suas habilidades e abrir mão de suas inabilidades. Se você ouvir o que a mindfulness tem a lhe dizer —e não a ignore em um dos seus ataques de paixão —então você estará protegido de fazer coisas inábeis. Isso significa que você tem que treinar a sua mindfulness para ser tão forte que a paixão não poderá superá-la. É por isso que meditamos. Devemos treinar nossa mindfulness para lembrar das coisas certas, e devemos treinar nossa voz para ser constante e forte. Desta forma, como disse o Buddha, quando a mindfulness se torna o seu refúgio, você mesmo se torna seu próprio refúgio.
A sua mindfulness também funciona para o benefício das outras pessoas e as protege. Afinal, se você não está fazendo coisas inábeis, consequentemente as outras pessoas não têm que sofrer com a sua falta de habilidade. Desta forma, o bem-estar das pessoas e o seu bem-estar não estarão em conflito.
O Buddha faz uma analogia com dois acrobatas. Na Índia, naqueles dias, acrobatas não tinham uma corda bamba para andar, mas tinham varas de bambu. Eles posicionavam uma vara de bambu para cima. Um dos acrobatas ficaria de pé em cima do bambu e, o outro, ficaria em cima dos ombros do primeiro acrobata. E, como o Buddha diz, cada acrobata tem que ser responsável pelo seu próprio senso de equilíbrio. Dessa forma, se torna mais fácil para o outro acrobata manter o seu equilíbrio também. Se você não está cuidando do seu próprio senso de equilíbrio e você está simplesmente se preocupado com a outra pessoa, você perderá o equilíbrio e a outra pessoa sofrerá também.
Mas o Buddha diz que também há momentos em que, quando você está ajudando outras pessoas, você está ajudando a si mesmo. Vou ler a seguinte passagem para vocês: “Como você cuida de si mesmo ao mesmo tempo em que você está cuidando dos outros? Através da resistência, inofensividade, através de uma mente de boa vontade e através da consideração. Assim é como você cuida de si mesmo e dos outros ao mesmo tempo”. Em outras palavras, você desenvolve a resistência, a inofensividade, a boa vontade e a consideração com o foco principal nas outras pessoas, mas você acaba ajudando-se também —pois você não está criando karma inábil e acaba desenvolvendo boas qualidades que serão úteis em sua meditação.
Vamos falar um pouco sobre essas quatro qualidades.
Quando o Buddha discute inofensividade, ele está falando principalmente sobre não instigar outras pessoas a violar os preceitos e não tentar gerar a paixão, aversão ou delusão na mente das outras pessoas. Em outras palavras, você reconhece o fato de que a principal posse das outras pessoas é o seu karma e assim você não tenta fazer nada para prejudicar o que lhes pertence.
Quanto à resistência, isto é principalmente uma questão de suportar a dor física e palavras duras. Falamos muito ao longo destes últimos dias sobre como lidar com a dor física. Se você for capaz de suportar a dor quando você estiver lidando com outras pessoas, torna-se muito mais fácil que você não reaja de maneiras inábeis. Em outras palavras, mesmo quando outras pessoas possam estar machucando você, você não revida. Você pode se defender, mas você não deixa o fato de que você está com dor faça com que você perca o controle. Afinal, quando as pessoas estão com dor ou estão com medo da dor, elas podem fazer coisas muito inábeis, até mesmo coisas cruéis. Mas se você for capaz de suportar a dor física, então você não terá medo da dor. E por causa da falta de medo, será mais provável que você possa ser capaz de manter a calma.
Quanto às palavras maldosas, a principal instrução do Buddha é aprender a despersonalizá-las. Uma de suas primeiras recomendações é a seguinte: se alguém diz algo realmente desagradável para você, diga a si mesmo: “Um som desagradável fez contato com o ouvido”. E deixe por isso mesmo.
Agora, quantas vezes você reage dessa forma ao ouvir palavras grosseiras? Quantas vezes você já as deixou parar ali no ouvido? Na maioria das vezes, criamos grandes histórias com essas palavras: “Porque é que esta pessoa é tão dura? Por que essa pessoa não me respeita”? Você continua criando todos os tipos de histórias em torno dessas palavras, e como resultado você acaba sendo como uma aranha que fica presa na sua própria teia. O som desagradável pode fazer apenas um contacto momentâneo, mas o fizemos ressoar em nossas mentes por horas. Dias. Anos. Por isso, a primeira instrução do Buddha é apenas aprender a deixar o som ou as palavras pararem bem na hora em que fazem contato com seus sentidos. E quando você não carrega essas histórias por aí, você sofre menos. Também é mais provável que você possa lidar de forma mais inteligente com a outra pessoa.
O segundo conselho do Buddha é refletir sobre a natureza da fala humana. Como ele diz, a fala humana é assim: pode ser oportuna ou inoportuna, verdadeira ou falsa, carinhosa ou dura, benéfica ou prejudicial, falada com uma mente repleta de boa vontade ou uma mente com ódio interior. Então, se alguém fala com você de uma maneira que seja prematura, falsa, dura, prejudicial ou com ódio, nada disso está fora do normal. Você não está sendo submetido a nada inédito. Se você puder pensar dessa maneira, então você será bem mais capaz de suportar a fala grosseira e será mais provável que você se torne menos inclinado a fazer algo danoso a essas pessoas.
Para o desenvolvimento de uma mente de boa vontade, o Buddha diz que, quando você está desenvolvendo boa vontade, existem certos pré-requisitos. O primeiro deles é que você aprende a estar contente, você é uma pessoa fácil de dar apoio, suporte, porque, se você não está contente, você estará pensando constantemente sobre o quanto mais você pode tirar das outras pessoas.
Você deve ser virtuoso em suas ações. Em outras palavras, você realmente age a partir do seu desejo de boa vontade. Ele também diz que você não deve gananciar apoiadores. Isso serve como um pouco de instrução aos professores de Dhamma. Se você estiver pensando sobre o número de pessoas que você deseja que esteja vindo, você tende a esquecer o que seria realmente bom para as pessoas que você está ensinando. Estes são os pré-requisitos para mettā, para que ela não seja hipócrita.
Existem alguns mal-entendidos sobre mettā que seria bom esclarecer. Por um lado, mettā não é amor-bondade. É simplesmente o desejo de que todas as pessoas possam agir com habilidade e colher os resultados de suas ações hábeis. Em segundo lugar, mettā não é uma oração. Estamos estabelecendo, basicamente, a nossa motivação para agir com habilidade com outras pessoas. Se todos os seres vivos realmente serão felizes e encontrarão a felicidade verdadeira, isso é algo além do nosso controle. Quando você olha para o mundo, você percebe que isso é algo muito improvável. Mas ser firme em sua intenção de que você não fará nada para prejudicar a felicidade verdadeira de ninguém: isso é algo que está sob o seu controle e é algo possível de se fazer. Em terceiro lugar, estendemos mettā para as pessoas independentemente do fato de elas merecerem ou não. E é bom para colocar a palavra “merecem”entre aspas, porque o Buddha nunca fala sobre o fato de pessoas merecem bondade ou não. Deseje boa vontade para todas as pessoas como uma proteção contra suas próprias atitudes inábeis. Em outras palavras, a boa vontade serve tanto para proteger você quanto a outra pessoa de suas ações inábeis.
O quarto ponto é que mettā não é necessariamente algo inato na mente. Nossos impulsos de boa vontade e os nossos impulsos de hostilidade são igualmente inatos. Portanto, o desejo de boa vontade —especialmente a boa vontade ilimitada —é algo que você tem que manter sempre em mente. O Buddha fala sobre a boa vontade como uma forma de determinação e mindfulness. Não somente manter a boa vontade em mente, mas também desenvolvê-la através da determinação. Para isso, você usa os três tipos de fabricações que estamos falando durante o retiro.
O Buddha diz que você deve proteger esta atitude com a sua vida, como uma mãe protegeria o seu único filho. Isso não significa que você ama a todos como uma mãe amaria seu filho. Na verdade, você está protegendo a sua boa vontade. Mesmo em situações difíceis e mesmo que isso possa custar a sua vida, você tem que manter a sua boa vontade a fim de proteger a sua bondade —que é mais importante do que a sua vida.
Aqui estão algumas expressões de boa vontade: “Feliz, em repouso, que todos os seres possam ser felizes em seus corações. Seja lá quais seres que existam: fracos ou fortes, sem exceção, longos, grandes, médios, curtos, sutis, grosseiros, visíveis e invisíveis, os que vivem perto ou longe, os que já nasceram ou que estão buscando o nascimento; que todos os seres possam ser felizes em seus corações”. Agora, isso é o que representa o desejo pela felicidade. Mas, então, o Buddha continua e diz: “Que ninguém engane uns aos outros ou despreze qualquer pessoa em qualquer lugar, seja através da raiva ou através da percepção da resistência, deseje que o outro sofra”. Em outras palavras, você está desejando que outros seres possam agir a partir das causas da felicidade verdadeira. Você não pode assumir a responsabilidade por sua felicidade. O melhor que você pode fazer é ser inofensivo e dar bons conselhos, dar um bom exemplo. Mas você tem que lembrar que a felicidade deles dependerá das ações deles também.
A quarta qualidade que o Buddha diz que você emprega para ajudar outras pessoas é a consideração, que é muito próxima à alegria empática. O Buddha fala sobre dois conjuntos de qualidades que você deve desenvolver a fim de mostrar sua consideração. Primeiro é quando você lida com os amigos individuais, você não fica feliz com coisas infortunas em suas vidas, você fica feliz com a sua sorte, você pára aqueles que os criticam e incentiva aqueles que os elogiam.
O Buddha também descreve a consideração em termos do que você não faz com as outras pessoas. Você não sai para beber com elas; você não sai para ficar até altas horas da noite com elas; e você não sai para jogar com elas. É um conselho muito prático.
A segunda definição do Buddha sobre tratar os outros com consideração, mostra como lidar com grupos de pessoas. Este é um bom conselho para grupos Dhamma. Para começar, você é generoso. Quaisquer coisas boas que você tenha —como o Dhamma —você fica feliz em compartilhar com outras pessoas. Em segundo lugar, você diz palavras amáveis. Isto significa que se você tiver de criticar os outros, você faz isso com habilidade: você formula a crítica verbalmente de uma forma que mostre que você os respeita e tenta encontrar o momento certo e o lugar certo para dizer essas coisas. Se possível você faz isso às sós, cara-a-cara, ou seja, não na frente de outras pessoas. O terceiro ponto é que você encontra maneiras de ser útil um com o outro, fornecendo ajuda genuína, não apenas ajudar para mostrar como você pode ser útil. Em outras palavras, você age como um voluntário nos trabalhos do grupo. E, em quarto lugar, você é consistente. Você mantém suas promessas um com o outro.
Trecho do excelente livro A Respiração como um Refúgio – Ṭhānissaro Bhikkhu