A atenção é a reza natural da alma

“Rituais não se prestam à interioridade narcísica. A libido do eu não consegue se acoplar neles. Quem se dedica a eles deve renunciar a si mesmo. Rituais produzem uma distância de si, uma transcendência de si. Eles despsicologizam, desinteriorizam seus atores. A percepção simbólica desaparece hoje cada vez mais em prol da percepção serial, incapaz da experiência da duração. A percepção serial não permanece como tomada de conhecimento contínua do novo. Ao contrário, apressa-se de uma informação à outra, de uma vivência à outra, de uma sensação à outra, sem terminar. Certamente, é por isso que as séries são tão populares hoje, pois correspondem ao hábito da percepção serial. No âmbito do consumo midiático, leva a Binge Watching, ao Komaglotzen, isto é, à maratona de séries. A percepção serial é extensiva, enquanto a percepção simbólica é intensiva. Dada sua extensão, sua atenção é rasa.

O regime neoliberal acelera a percepção serial, aumenta o hábito serial. Elimina deliberadamente a duração para obter mais consumo. O update constante que compreende nesse ínterim todos os âmbitos da vida, não permite a duração, um término. A coação permanente da produção leva a um desencasamento. A vida se torna, com isso, mais contingente, mais efêmera, e instável. Habitar, contudo, requer duração. O transtorno de déficit de atenção é resultado de um recrudescimento patológico da experiência serial. A experiência nunca repousa. Desaprendeu a permanecer. A atenção profunda como técnica cultural se forma justamente pelas práticas rituais e religiosas. Religião não provém por acaso de relegere, prestar atenção. Toda práxis religiosa é um exercício de atenção. O templo é um lugar de atenção profunda. A atenção é, segundo Malebranche, a reza natural da alma. Hoje, a alma não reza. Ela se produz continuamente.

Estímulos dissipam-se rapidamente. A repetição descobre no que não estimula, insípido, no que não brilha, inconspícuo, no fado, uma intensidade. Quem, ao contrário, espera sempre algo novo, excitante, não vê o que já está ali. O sentido, ou seja, o caminho, é repetível. Não se fica farto do caminho: “Eu posso repetir apenas o que está privado de evento, e nisso, contudo, algo me alegra no canto do olho (a luz do dia, ou o crepúsculo); mesmo um pôr-do-sol já é um evento e irrepetível; com efeito, não posso repetir sequer uma vez uma determinada luz, ou um crepúsculo, mas apenas um caminho (e, nele, devo ter cuidado com todas as pedras, mesmo as novas)”[ 10]. À caça por novos estímulos, excitações e vivências, perdemos hoje a capacidade de repetição. Aos dispositivos neoliberais como autenticidade, inovação ou criatividade é inerente uma coação permanente ao novo. Eles produzem, contudo, ao fim e ao cabo, apenas variações do igual.

O novo cai logo na rotina. É mercadoria que se gasta e provoca novamente a necessidade de algo novo. A coação de ter que rejeitar o rotineiro produz mais rotina. É inerente ao novo uma estrutura de tempo que logo esmaece em rotina. A coação de produção como coação ao novo apenas aprofunda o atoleiro da rotina. Para escapar da rotina, do vazio, consumimos ainda mais coisas novas, novos estímulos e vivências. Justamente a sensação de vazio impulsiona a comunicação e o consumo.”

No livro O desaparecimento dos rituais de Byung-Chul Han

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