A plena atenção é um pensamento-espelho. Reflete apenas o que está acontecendo no momento, e exatamente da maneira que está acontecendo. Não há distorções. A plena atenção é uma observação sem julgamento. É aquela habilidade da mente em observar sem criticismo. Com esta habilidade, pode-se ver as coisas sem condenação ou julgamento. Nada nos surpreende. Simplesmente temos um interesse equilibrado nas coisas como elas são em seu estado natural. Não se decide nada nem se julga nada. Apenas se observa. Por favor, perceba que quando digo “Não se decide nada nem se julga nada”, quero dizer que o meditante observa a experiência de maneira semelhante a um cientista que observa um objeto ao microscópio, sem nenhuma ideia pré-concebida, apenas vendo o objeto como ele é. Da mesma maneira, o meditante percebe a impermanência, a insatisfatoriedade e a ausência de ego.
Para nós é psicologicamente impossível observar com objetividade o que está acontecendo em nosso interior, se ao mesmo tempo não aceitarmos a ocorrência de nossos vários estados mentais. Isto é especialmente verdade no caso de estados mentais desagradáveis. Para observar nosso próprio medo temos de aceitar o fato de que estamos com medo. Não é possível examinar nossa própria depressão sem admití-la plenamente. O mesmo é verdade com relação à irritação, agitação, frustração e todos os demais estados mentais desconfortáveis. Você não poderá examinar algo completamente se estiver ocupado em rejeitar a existência dele. Seja qual for a experiência que possamos estar tendo, a plena atenção apenas aceita-a. É outra simples ocorrência da vida, apenas algo para se estar consciente. Nenhum orgulho, nenhuma vergonha, nada pessoal para ser sustentado – o que está lá, está lá.
A plena atenção é uma vigilância imparcial. Não toma qualquer partido. Ela não se gruda naquilo que é percebido. Apenas percebe. A plena atenção não fica embriagada com os bons estados mentais. Não tenta passar de lado dos estados mentais ruins. Não há nenhum apego ao agradável nem fuga do desagradável. A plena atenção vê todas as experiências igualmente, todos os pensamentos igualmente, e todas as sensações igualmente. Nada é suprimido. Nada é reprimido. A plena atenção não tem favoritismos. A plena atenção é um estado de consciência não-conceitual. Um outro termo para Sati é “pura atenção” (bare attention). Não é pensar. Ela não se envolve com pensamentos ou conceitos. Ela não se prende à memórias, idéias ou opiniões. Apenas olha. A plena atenção registra experiências, mas não as compara. Não as rotula nem as categoriza. Apenas observa tudo como se estivesse ocorrendo pela primeira vez. Não é análise a qual é baseada na reflexão e na memória. É, antes, a experiência direta e imediata de tudo que estiver acontecendo, sem a intermediação do pensamento. No processo perceptivo ela vem antes do pensamento.
A plena atenção é o estado de consciência no tempo presente. Ela tem lugar no aqui e agora. É a observação do que está acontecendo exatamente agora, no momento presente. Ela permanece sempre no presente, flutuando permanentemente na crista da onda do tempo que está passando. Se estiver lembrando-se de seu professor de segundo grau, isto é memória. Quando então se der conta de que está se lembrando dele, isto é plena atenção. Se a seguir conceituar o processo é disser a si mesmo, “Ah, estou lembrando”, isto é pensar.
A plena atenção é um estado de alerta não-egoísta. Acontece sem referência ao self. Com a plena atenção vêem-se todos os fenômenos sem referências a conceitos tais como, “eu”, “meu”, “mim”. Por exemplo, vamos supor que haja dor em sua perna esquerda. A consciência comum diria, “Eu tenho uma dor”. Usando a plena atenção poderia simplesmente notar a sensação como sensação. Não se agregaria um conceito extra “eu”. A plena atenção pára o processo de se acrescentar ou subtrair algo à percepção. Não se realça nada. Não se enfatiza nada. Apenas se observa exatamente o que está lá, sem distorção.
A plena atenção é consciência sem meta. Na plena atenção, não se busca resultados. Não se procura realizar nada. Quando alguém está plenamente atento, experiencia a realidade no presente momento sob qualquer forma que ela tome. Não há nada a ser obtido. Existe apenas observação.
A plena atenção é a consciência da mudança. É a observação do fluxo da experiência que passa. É observar as coisas à medida que vão se mudando. É ver o nascimento, o crescimento e a maturidade de todos os fenômenos. É observar a decadência e morte de todos os fenômenos. Plena atenção é observar as coisas, momento a momento, continuamente. É observar todos os fenômenos físicos, mentais e emocionais, o que quer que esteja ocorrendo na mente naquele momento. Apenas se senta de lado e observa o espetáculo. Plena atenção é a observação da natureza básica de todo fenômeno transitório.
É observar as coisas surgindo e desaparecendo. É ver como as coisas nos fazem sentir e como reagimos a elas. É observar como isto afeta os outros. Em plena atenção, somos um observador imparcial, cuja única tarefa é manter o foco no espetáculo que passa constantemente em seu universo interior. Por favor, note este último ponto. Na plena atenção observa-se o universo interior. O meditante que está desenvolvendo a plena atenção não está preocupado com o universo exterior. Ele está lá, mas na meditação, o campo de estudo é a própria experiência, seus pensamentos, sensações e percepções. Na meditação cada um é seu próprio laboratório. O universo interior possui um enorme cabedal de informações que contém o reflexo do mundo externo e muito mais. O exame deste material conduz à liberdade total.
A plena atenção é uma observação participativa. O meditante é simultaneamente participante e observador. Quando se observa a própria emoção ou a sensação física, se está ao mesmo tempo sentindo-as. A plena atenção não é um estado de consciência intelectual. É apenas conscientização. Aqui se desfaz a metáfora do pensamento-espelho. A plena atenção é objetiva, mas não é fria nem insensível. É uma experiência desperta de vida, uma participação alerta no movimento processual de viver.
A plena atenção é um conceito extremamente difícil de se definir em palavras, não porque ela seja complexa, mas sim, por ser muito simples e aberta. O mesmo problema surge em todas as áreas da experiência humana. O conceito mais básico é sempre o mais difícil de ser delimitado. Consulte um dicionário e verá exemplos claros. As palavras longas geralmente têm definições concisas, mas as palavras curtas e básicas, tais como “o” e “é”, têm definições que podem ter até uma página de extensão. Na física, as funções mais difíceis de serem descritas são as mais básicas – aquelas que tratam da realidade mais fundamental da mecânica quântica. A plena atenção é uma função pré-simbólica. Você pode brincar com simbolismos verbais durante o dia todo, mas nunca conseguira fixá-la completa-
mente. Jamais poderemos expressar precisamente seu significado.
Entretanto, podemos descrever como funciona.
As Três Atividades Fundamentais
Existem três atividades fundamentais da plena atenção. Podemos usar estas atividades como definições funcionais do termo:
(1) a plena atenção nos faz lembrar do que deveríamos estar fazendo;
(2) vê as coisas como elas realmente são;
e (3) vê a natureza profunda de todos os fenômenos. Vamos examinar estas definições com mais detalhes.
A plena atenção nos faz lembrar daquilo que deveríamos estar fazendo. Na meditação, você centra sua atenção em um único item. Quando sua mente se afasta desse foco, é a plena atenção que lhe lembra que sua mente está devaneando e lhe recorda daquilo que deveria estar fazendo. É a plena atenção que traz você de volta para o objeto da meditação. Tudo isto ocorre instantaneamente e sem nenhum diálogo interno. Plena atenção não é pensar. A prática repetida da meditação estabelece esta função como um hábito mental que continua em ação para o resto da sua vida. Um meditante sério presta a pura atenção às ocorrências durante todo o tempo, dia após dia, quer esteja formalmente sentado em meditação ou não. Este é um elevado ideal que aqueles que meditam poderão trabalhar durante anos, ou mesmo décadas. Nosso hábito de nos imobilizar nos pensamentos é muito antigo, e nos prenderá de maneira a mais tenaz.
A única saída é ser igualmente persistente no cultivo constante da plena atenção. Quando a plena atenção está presente, perceberá quando estiver preso nos seus padrões de pensamentos. É esta verificação que lhe permite sair desse processo de pensar e se libertar deles. A plena atenção então retorna sua atenção ao foco apropriado. Se naquele momento estiver meditando, seu foco será o objeto formal da meditação. Caso não esteja em meditação formal, será apenas uma aplicação da própria pura atenção, apenas a pura percepção de tudo aquilo que aparece, sem deixar-se envolver. – “Ah,isto apareceu… agora isto, agora isto… agora isto”.
A plena atenção é ao mesmo tempo a própria pura atenção e a função de lembrar-nos de prestar pura atenção, caso tivermos cessado de fazê-lo. A pura atenção é notar. Ela se restabelece simplesmente por notar que não estava presente. Assim que notar que não estava notando, então por definição você estará notando e dessa forma você está de volta novamente prestando pura atenção.
A plena atenção cria sua própria sensação na consciência. Ela tem um sabor – um leve, claro e energético sabor. Em contrapartida, o pensamento consciente é pesado, ponderado e inquieto. Porém, mais uma vez repetimos isto são apenas palavras. Sua própria prática lhe mostrará a diferença. Então, provavelmente você achará suas próprias palavras, e os termos aqui usados se tornarão supérfluos. Lembre-se, a prática é tudo.
A plena atenção vê as coisas como elas realmente são. Ela não acrescenta nem subtrai nada à percepção. Não distorce nada. Ela é uma pura atenção e apenas olha para o que quer que surja. O pensamento consciente cola coisas sobre nossa experiência, sobrecarrega-nos de conceitos e idéias, afunda-nos num redemoinho frenético de planos e preocupações, medos e fantasias. Quando está atento você não participa desse jogo. Apenas percebe exatamente o que surge na mente e percebe o que vem a seguir. “Ah, isto… isto…e agora isto”. Na verdade é muito simples.
A plena atenção vê a verdadeira natureza de todos os fenômenos. A plena atenção e apenas a plena atenção pode perceber as três características essenciais que o Budismo ensina como as mais profundas verdades da existência. Em pali essas três características são chamadas Anicca (impermanência), Dukkha (insatisfatoriedade) e Anatta (não-ego — a ausência de uma entidade permanente, imutável que chamamos de Alma ou Self). Estas verdades não são apresentadas nos ensinamentos budistas como dogmas que exigem fé cega. Os budistas sentem que essas verdades são universais e auto-evidentes para todos aqueles que investiguem cuidadosamente de uma forma apropriada. A plena atenção é este método de investigação. Só a plena atenção tem o poder de revelar o nível mais profundo da realidade disponível para a observação humana.
Neste nível de investigação, vê-se o seguinte:
(a) todas as coisas condicionadas são inerentemente transitórias;
(b) todas as coisas do mundo são, em última instância, insatisfatórias;
e (c) não há na verdade entidades imutáveis ou permanentes, apenas processos.
A plena atenção funciona como um microscópio eletrônico. Isto é, opera em nível tão refinado que se pode perceber diretamente aquelas realidades que, na melhor das hipóteses, são construções teóricas para o processo de pensamento consciente. A plena atenção efetivamente vê o caráter impermanente de toda percepção. Vê a natureza transitória e passageira de tudo que é percebido. Também vê a natureza inerentemente insatisfatória de todas as coisas condicionadas. Percebe que não há nenhum sentido agarrar-se a qualquer desses espetáculos passageiros. A paz e a felicidade não podem ser encontradas dessa maneira. Finalmente, a plena atenção vê a ausência de substância inerente em todos os fenômenos. Vê a maneira com que arbitrariamente selecionamos certos tipos de percepção, isolando-os do resto do fluxo contínuo da experiência e então os conceituamos como entidades independentes e duradouras. A plena atenção realmente vê essas coisas. Ela não pensa a respeito delas, as vê diretamente.
Quando a plena atenção é plenamente desenvolvida, vê esses três atributos da existência diretamente, instantaneamente, sem a intervenção do pensamento consciente. Na verdade, mesmo esses atributos do qual acabamos de falar são inerentemente arbitrários.
Na verdade esses atributos não existem como itens separados. São apenas o resultado de nosso esforço para tornar este processo fundamentalmente simples chamado de plena atenção e expressá-lo através dos pesados e inerentemente inadequados pensamentos simbólicos do nível consciente. A plena atenção é um processo, mas não acontece em etapas. É um processo holístico que ocorre como uma só unidade: você nota sua falta de plena atenção, e este notificar em si mesmo é o resultado da plena atenção; e a plena atenção é pura atenção; e pura atenção é notar as coisas exatamente como elas são sem distorção; e elas são impermanentes (Anicca), insatisfatórias (Dukkha), e sem ego (Anatta). Tudo isto tem lugar no espaço de uns poucos momentos mentais. Entretanto, isto não significa que como resultado de seu primeiro momento de plena atenção, atingirá instantaneamente a liberação (libertação de todas as fraquezas humanas). Aprender a integrar este material em sua vida consciente é todo um outro processo. E aprender a prolongar este estado de plena atenção é ainda outra coisa.
São processos plenos de júbilo e vale a pena o esforço.
Trecho do livro A Meditação da Plena Atenção – VENERÁVEL BHANTE HENEPOLA GUNARATANA