Este exato momento é o mestre perfeito
Podemos encontrar um adversário à nossa altura em um poodle ou em um cão de guarda furioso. O ponto interessante é: o que vai acontecer em seguida?
De modo geral, encaramos qualquer tipo de desconforto como uma má notícia. Entretanto, para os praticantes ou guerreiros espirituais — pessoas que têm uma certa ânsia de conhecer a verdade — sentimentos como decepção, constrangimento, irritação, ressentimento, raiva, ciúme e medo, em vez de significarem más notícias, representam momentos muito claros que nos mostram onde estamos nos detendo. Eles nos ensinam a encontrar ânimo e a enfrentá-los, quando preferiríamos desmoronar e recuar. São como mensageiros que revelam, com assustadora clareza, exatamente em que ponto estamos presos. Este exato momento é o mestre perfeito e, para nossa sorte, está conosco onde quer que estejamos.
Os acontecimentos e pessoas que desencadeiam nossas questões mal resolvidas poderiam ser vistos como boas notícias. Não precisamos sair em busca de nada. Não precisamos criar situações que nos façam chegar ao limite. Elas ocorrem por si mesmas, com a regularidade de um relógio. Todos os dias nos são dadas inúmeras oportunidades de abertura ou fechamento. A oportunidade mais preciosa se apresenta quando nos deparamos com uma situação com a qual achamos que não sabemos lidar. É demais. Foi longe demais e nos sentimos mal conosco mesmos. Não há como manipular a situação e sair-se bem dela. Por mais que tentemos, nada funciona. Basicamente, a vida nos pegou.
É como se olhássemos para o espelho e víssemos um gorila. O espelho está lá, nosso reflexo está ali, e o que vemos não é bonito. Tentamos ajustar o ângulo para melhorar a imagem, mas, não importa o que façamos, ainda nos parecemos com um gorila. Isso é ser pego pela vida, é chegar naquele ponto em que não há outra escolha: é abraçar o que está acontecendo ou empurrar para longe.
De modo geral, não encaramos essas situações como ensinamentos. Nós as detestamos automaticamente. Corremos como loucos. Fazemos uso de todo tipo de fuga — todas as dependências se iniciam no momento em que chegamos ao limite e não podemos suportar isso. Sentimos que é preciso abrandar, acolchoar a situação de alguma forma, e nos tornamos dependentes daquilo que parece diminuir a dor. Na verdade, o avassalador materialismo que vemos no mundo resulta também desse momento. Existem muitas fórmulas destinadas a nos distrair do momento presente, suavizar e atenuar suas ásperas arestas, para não termos de receber o total impacto da dor que surge quando não conseguimos manipular a situação e sair dela com nossa boa imagem intacta.
A meditação é um convite para percebermos quando chegamos ao limite e para não sermos levados pela esperança e pelo medo. Através da meditação, somos capazes de ver claramente o que está acontecendo com nossos pensamentos e emoções, e também de deixá-los ir. A meditação é encorajadora, porque, mesmo quando nos fechamos, não conseguimos mais ignorar o que estamos fazendo. Vemos claramente que estamos nos fechando. Esse processo, por si mesmo, começa a iluminar a escuridão da ignorância. Somos capazes de perceber como fugimos, como nos escondemos e nos mantemos ocupados, tentando impedir que nosso coração seja penetrado. Somos também capazes de ver como é possível abrir e relaxar.
Basicamente, decepção, confusão e todas as situações em que nos sentimos mal são como uma espécie de morte. Perdemos completamente nossa base. Não somos capazes de impedir a desintegração e sentimos que não temos mais o controle dos acontecimentos. Em vez de perceber que é preciso existir a morte para haver nascimento, apenas lutamos contra o medo de morrer. Chegar ao limite não é algum tipo de punição. Na verdade, sentir medo e tremer, quando estamos prestes a morrer, é um sinal de saúde. Outro sinal de saúde é não sermos destruídos pelo medo e pelo tremor, mas encará-los como um aviso de que está na hora de interromper a luta e olhar diretamente para aquilo que nos ameaça. Sentimentos como decepção e ansiedade são como mensageiros avisando-nos de que estamos no limiar de um território desconhecido.
Para alguns de nós, o território desconhecido pode ser a escuridão do armário. Para outros, uma viagem espacial. O que causa esperança e medo em mim é diferente do que provoca os mesmos sentimentos em outras pessoas. Minha tia chega ao seu limite quando mudo de lugar um abajur da sua sala. Uma amiga se perde totalmente quando precisa mudar-se para um novo apartamento. Meu vizinho tem medo de altura. Não importa o que nos faz chegar ao limite. A questão é que, cedo ou tarde, isso acontece a todos nós.
A primeira vez em que encontrei Trungpa Rinpoche, estávamos em uma classe de alunos da quarta série que lhe faziam muitas perguntas sobre sua infância no Tibete e a ida para a Índia, fugindo dos comunistas chineses. Um menino perguntou-lhe se havia sentido medo. Rinpoche respondeu que seu mestre o havia encorajado a ir a lugares que o atemorizavam, como cemitérios, e a experimentar uma aproximação com as coisas de que não gostava. Então, ele nos contou uma história sobre uma viagem, com seus seguidores, para um monastério no qual nunca havia estado. Quando se aproximaram dos portões, viram um grande cão de guarda, com dentes enormes e olhos vermelhos, que rosnava ferozmente e lutava para se libertar da corrente que o prendia. O cão parecia desesperado para atacá-los. Quando Rinpoche se aproximou, pôde ver sua língua azulada e a saliva que escorria da boca. Mantendo boa distância, passaram pelo cachorro e entraram. De repente, a corrente arrebentou e o cão investiu contra eles. Seus companheiros gritaram e ficaram paralisados pelo terror. Rinpoche virou-se e correu o mais rápido possível exatamente na direção do cachorro. Este ficou tão surpreso que colocou o rabo entre as pernas e fugiu. Podemos encontrar um adversário à nossa altura em um poodle ou em um cão de guarda furioso. O ponto interessante é: o que vai acontecer em seguida?
A jornada espiritual envolve ir além da esperança e do medo, caminhar em território desconhecido e mover-se sempre para a frente. O aspecto mais importante de estar em um caminho espiritual pode ser simplesmente continuar em movimento. Normalmente, quando chegamos ao limite, sentimos o mesmo que os companheiros de Rinpoche e paralisamos de terror. Nosso corpo e mente congelam.
Como lidar com nossa mente, no momento em que encontramos um adversário à nossa altura? Em vez de assumir uma atitude indulgente ou rejeitar nossa experiência, podemos permitir, de algum modo, que a energia da emoção, a qualidade do que estamos sentindo, penetre em nosso coração. É mais fácil falar do que fazer, mas essa é uma nobre maneira de viver. Definitivamente, esse é o caminho da compaixão — o caminho para cultivar coragem e compassividade humanas.
Nos ensinamentos budistas ouvimos falar de ausência de ego. Parece difícil de compreender — afinal, do que estão falando? Entretanto, quando os ensinamentos são sobre neurose, nós nos sentimos em casa. Isso é algo que compreendemos perfeitamente. Mas, e a ausência de ego? Quando atingirmos nosso limite e estivermos dispostos a conhecer esse lugar inteiramente — o que implica não alimentar nem reprimir — nossa dureza se dissolverá. Seremos suavizados pela força absoluta da energia que surge, seja ela qual for — raiva, decepção, medo. Quando não está solidificada em uma direção ou em outra, a própria energia penetra em nosso coração e provoca a abertura. Essa é a descoberta da ausência de ego e ela ocorre quando nossos esquemas habituais desmoronam. Atingir o limite não é encontrar um obstáculo ou uma punição, mas uma saída em direção à sanidade e incondicional bondade dos seres humanos.
Do livro “Quando Tudo se Desfaz” de Pema Chödrön