Do livro O Salto de Pema Chödrön
shenpa representa também nossa ansiedade e a vontade de se coçar. Ela nos impele a fumar um cigarro, a comer demais, a beber mais um drinque, a dizer alguma coisa maldosa ou a contar uma mentira. É assim que a shenpa surge em nossas experiências cotidianas. Alguém diz uma palavra áspera, e você fica tenso: instantaneamente, somos fisgados. A tensão logo se manifesta em culpar a pessoa ou nos depreciar. A reação em cadeia de falar, agir ou nos tornarmos obsessivos acontece com rapidez.
shenpa, fundamental e básica, é o apego ao ego: apego à nossa identidade, à imagem que temos de nós.
Por exemplo, quando as palavras estão impregnadas de shenpa, elas, com facilidade, convertem-se em palavras de ódio. Qualquer palavra pode transformar-se em um insulto racial, em uma linguagem agressiva, quando tem a força e o impulso da shenpa por trás.
“Nessa jornada do despertar, essa jornada de aprender a estar presente, é muito útil reconhecer a shenpa quando ela provoca uma reação. Pode ser uma manifestação sutil, um recuo ligeiro, uma tensão involuntária, ou um choque total e extremamente carregado. Na verdade, não importa se a shenpa vier como brasa ou como um incêndio violento em uma floresta. Se der o primeiro passo e perceber que foi fisgado, já estará interrompendo uma antiga reação habitual. Que já interrompeu o movimento, mesmo que por pouco tempo, de acionar o piloto automático e fugir. Você está desperto, consciente de que foi fisgado e, neste momento, você tem uma escolha: pode fortalecer ou não a shenpa. É um momento de extrema tensão no qual você aumenta aos poucos a intensidade, ou escolhe se imobilizar e vivenciar a energia desconfortável sem lutar. Em vez de ver a shenpa como um obstáculo a ser transposto, é melhor considerá-la uma oportunidade de transformação, uma porta aberta para o despertar. Quando percebo que fui impelida a agir, penso que é um momento neutro, um momento no tempo, um momento de verdade que pode seguir qualquer rumo. É um momento precioso para começarmos a fazer escolhas que levarão à felicidade e à liberdade, e não a escolhas que acarretarão um sofrimento desnecessário e à imprecisão de nossa inteligência, cordialidade, e de nossa capacidade de continuarmos receptivos e presentes no movimento natural da vida. Ulisses, o herói da antiga mitologia grega, exemplifica a coragem ao escolher conscientemente ficar receptivo e presente quando a tentação de desistir é intensa. Na viagem marítima de volta à Grécia depois da guerra de Troia, Ulisses sabia que seu navio atravessaria uma área muito perigosa habitada por lindas donzelas conhecidas como sereias. Ele fora prevenido que o apelo dessas mulheres era irresistível e que os marinheiros não conseguiam evitar a tentação de se dirigirem a elas; assim, despedaçavam os barcos nas rochas e afogavam-se. Mas Ulisses queria ouvir o canto das sereias. Ele conhecia a profecia que, se alguém ouvisse suas vozes e resistisse a procurá-las, as sereias perderiam o poder para sempre e definhariam até morrer. Esse desafio motivou-o. Assim que o navio aproximou-se da terra natal das sereias, Ulisses disse aos seus homens para colocarem cera em seus ouvidos e o amarrarem bem apertado no mastro, instruindo-os que por mais que lutasse e gesticulasse, não importa quanto mais colérico ficasse ordenando que cortassem as cordas, eles não o desamarrariam até que o navio chegasse a um ponto familiar da terra, bem distante do som do canto das sereias. Essa história, é claro, teve um final feliz. Os homens seguiram suas instruções, e Ulisses venceu o desafio. Em um grau maior ou menor, todos nós teremos de passar por um desconforto similar, para não seguir o apelo de nossas sereias pessoais e atravessar a porta aberta do despertar. Cada um de nós pode ser um participante ativo na criação de um futuro sem violência, apenas com a forma com que trabalhamos a shenpa no momento em que surge. Hoje, a maneira como reagimos ao sermos fisgados tem implicações globais. Nesse momento neutro, com frequência de extrema tensão, conscientemente escolhemos fortalecer nossos antigos medos baseados no hábito, ou vivenciamos em sua plenitude a energia agitada e inquieta, deixando-a se desdobrar e fluir com naturalidade. Não haverá falta de oportunidades ou material para trabalhar. Ao examinar com atenção esse processo de mudança, como faço há anos, é fácil notar que é preciso coragem para relaxar com nossa energia dinâmica tal como ela é, sem cisão ou uma tentativa de se esquivar. É preciso a coragem, determinação e curiosidade de um Ulisses para permanecermos abertos e receptivos à energia da shenpa, à irritação cutânea e à ansiedade da shenpa, e não reagirmos da forma habitual.
A reação pode ser muito forte. Como Dzigar Kungtrül diz, uma das qualidades da shenpa é sua persistência. A ânsia de se vingar, o poder do desejo, a força do hábito assemelha-se a uma força magnética que nos impele a uma direção familiar.
Essa prática de transformação requer, em particular, que você permaneça aberto e receptivo à sua energia quando for estimulado. Ela inclui três etapas. Etapa Um. Perceber o momento em que foi fisgado. Etapa Dois. Fazer uma pausa, respirar três vezes conscientemente, e deixar-se levar pela energia. Apoie-se nela. Aceite-a. Vivencie totalmente a energia. Prove seu gosto. Toque-a. Cheire-a. Fique curioso a seu respeito. Como ela se comporta em seu corpo? Que pensamentos provoca? Torne-se íntimo da ansiedade e da angústia da shenpa, e continue a respirar. Uma parte dessa etapa é aprender a não ser seduzido pela força da shenpa. Como Ulisses, é possível ouvir o apelo das sereias sem se seduzir. É preciso permanecer consciente e compassivo, interrompendo sua força e evitando que cause dano. Não fale, não aja, e sinta a energia. Una-se à sua energia, com o fluxo e refluxo da vida. Em vez de rejeitá-la, aceite-a. Essa entrega é muito aberta, curiosa e inteligente. Etapa Três. Depois, relaxe e siga sua vida sem que a prática converta-se em algo complicado, um teste de tolerância, uma competição em que você vence ou perde. O maior desafio dessa prática é aceitar a energia inquieta, e permanecer consciente em vez de se esquivar automaticamente. No início, só conseguimos suportar o desprazer e sair da espiral da angústia por alguns breves momentos, porém o hábito retorna.”
“Quanto mais estiver presente com você mesmo, mais você perceberá contra o que todos nós lutamos. Assim como eu, outras pessoas sofrem e querem eliminar o sofrimento. E como eu, elas agem de um modo que só agrava a situação.”
“Quando começamos a ver a reação em cadeia da shenpa, não nos sentimos superiores. Ao contrário, esse insight tem o potencial de nos tornar humildes e faz com que sintamos mais simpatia pela perplexidade dos outros.”
Um comentário em “Shenpa – Apego a nossa identidade, apego ao ego”