A melhor maneira de pegar uma serpente No Sutra Conhecendo a Melhor Maneira de Pegar uma Serpente, Buda nos mostra de que maneira enxergar claramente a realidade, sem ficarmos presos a conceitos ou noções. Estudei o Sutra do Diamante durante muitos anos antes de encontrar o Sutra da Serpente, e fiquei feliz ao constatar que as analogias do barco e do "silêncio trovejante", apresentadas por Buda, teve suas raízes neste primitivo sutra. Segundo o Sutra da Serpente, devemos ser cuidadosos ao estudar o darma, porque se o entendermos incorretamente, poderemos causar mal a nós mesmos e aos outros. Buda disse que entender o darma é como tentar agarrar uma serpente. Se a pegar pelo corpo, ela pode virar-se e picar você. Mas se souber como imobilizá-la usando uma vara bifurcada na ponta, para prender sua cabeça embaixo, ela não fará mal a ninguém. "Se você não prestar atenção ao darma com todo o seu ser, seu coração e mente, poderá entendê-lo incorretamente, e isso trará mais mal do que bem a você e a outros. E preciso ser cuidadoso e atento no estudo do darma." Buda disse também: Há sempre algumas pessoas que, ao invés de estudarem os sutras em nome da liberação, fazem-no apenas para satisfazer sua curiosidade ou vencer numa argumentação. Com tal motivação, elas perdem o verdadeiro espírito do ensinamento. Passam por durezas e dificuldades que podem exauri-las sem que obtenham quase nenhum benefício. Bhikkhus, uma pessoa que estuda dessa forma pode ser comparada a alguém que tenta pegar uma serpente venenosa na selva. Se ela estende a mão para fazê-lo, a serpente pode picar sua mão, perna, ou qualquer outra parte de seu corpo. Tentar pegar uma serpente desse jeito é desvantajoso e só pode criar sofrimento. Bhikkhus, entender meus ensinamentos de forma errônea é a mesma coisa. Se você não pratica o darma corretamente, pode vir a entender o oposto do que ele pretende mostrar. Mas se pratica inteligentemente, entenderá as palavras e o espírito dos ensinamentos e será capaz de explicá-los corretamente. Não pratique somente para se exibir ou argumentar com os outros. Pratique para alcançar a liberação. Se assim fizer, haverá pouca dor ou exaustão. Bhikkhus, um estudante inteligente do darma é como um homem que usa uma vara com ponta bifurcada para pegar uma serpente. Ao avistar na selva uma serpente venenosa, ele coloca a vara de maneira a prender a cabeça da serpente embaixo e, com a mão, pega-a pelo pescoço. Mesmo que a serpente se enrole na mão do homem, na perna, ou outra parte do corpo, ela não o picará. Esta é a melhor maneira de pegar uma serpente, e não levará à dor ou exaustão. Quando observamos em profundidade este sutra dos tempos primevos, podemos ver muitos métodos que nos foram propostos mais tarde nos sutras do Mahayana. O Sutra do Diamante Prajnaparamita tem uma sentença tirada daquele sutra quase letra-por-letra: "Mesmo o darma tem de ser abandonado, sem falar no não-darma". Mesmo que seja o darma verdadeiro, você terá de deixá-lo e não se agarrar demasiadamente a ele. Por todo o cânone budista tripitakax, há exemplos de mau entendimento dos ensinamentos de Buda. Uma vez, antes de ir para um retiro solitário perto da cidade de Vaisali, Buda deu uma palestra falando sobre a impermanência, impureza do corpo e não-eu. Alguns monges não o entenderam direito e pensaram: "Esta vida não vale a pena ser vivida, uma vez que tudo que existe é impuro e precisa ser abandonado". Então, depois que Buda partiu para o seu retiro, vários deles cometeram suicídio no próprio mosteiro onde Buda havia falado. Como puderam os monges entender Buda tão mal? Como podiam pensar que esse era um ensinamento verdadeiro de Buda? A verdade é que, nos dias de hoje, ainda há pessoas que pensam assim. Buda ensinou que o sofrimento existe e eles então acharam que, para acabar com o sofrimento, tinham que parar de existir. E fácil entender mal o ensinamento de Buda. O monge Yamaka propagou essa idéia até que um dia Shariputra tomou conhecimento disso e deu-lhe a instrução apropriada. No Sutra da Serpente, um monge chamado Arittha disse que Buda ensinou que os prazeres sensoriais não eram obstáculo para a prática. Seus colegas monges tentaram dissuadi-lo, mas ele continuou a manter essa opinião. Ao saber disso Buda chamou Arittha e, na presença de muitos monges, perguntou: "Arittha, é verdade que você anda dizendo que eu ensino que os prazeres sensoriais não são obstáculo para a prática?" Arittha respondeu: "Sim, Senhor, de fato acredito que, segundo seus ensinamentos, os prazeres sensoriais não são obstáculo para a prática". Eu empreguei bastante tempo refletindo sobre essa passagem, e fiz também alguma pesquisa. Ao ler qualquer sutra, você deve ter em mente o seu contexto assim como todo o ensinamento de Buda, para poder entender o que realmente aconteceu. Descobri que Arittha era um monge inteligente, com uma personalidade atraente, que ouviu Buda falar sobre a prática de automortificação, partilhando sua própria experiência durante os seis anos em que praticou ascetismo. Buda havia descoberto que o ascetismo não ajuda — para alcançar a iluminação você tem que cuidar de seu corpo — e havia, portanto, aceito o leite de arroz e outras oferendas que os aldeões de Uruvela lhe fizeram. Buda era uma pessoa feliz, capaz de aproveitar inteiramente a beleza de uma manhã ou um copo de água cristalina. Numa ocasião em que estava com Ananda sobre o Pico do Abutre, ele apontou a plantação de arroz lá embaixo e disse: "Ananda, não são lindos esses campos quando o arroz está maduro? Vamos decorar as roupas dos monges com este padrão". Outra vez, quando passava pela cidade de Vaisali, ele disse: "Ananda, que bela é Vaisali!" Quando o rei Mahanama convidou Buda e seus monges para uma refeição, Buda fez uma observação: "Mahanama nos ofereceu a melhor espécie de comida". Buda estava cônscio da qualidade da comida. Eu conheço monges que não ousam dizer que é saborosa a comida que ingerem. Um dia na Tailândia, ofereceram-me um delicioso arroz doce com manga. Gostei muito e disse aos anfitriões: "Isto está ótimo". Eu sabia que os monges tailandeses não dizem isso, mas acho que é seguro apreciar o que está em torno e dentro de você, desde que você esteja consciente de sua impermanência. Não há nada de errado em apreciar um copo de água quando se está com sede. Na verdade, para de fato apreciá-lo você tem de estar no momento presente. Quando morre uma flor nós não choramos. Sabemos que ela é impermanente. Se praticarmos conscientes da natureza da impermanência, sofreremos menos e aproveitaremos mais a vida. Se sabemos que as coisas são impermanentes, cuidaremos de aproveitá-las no momento presente. Nós sabemos que as pessoas que amamos são de natureza impermanente, então tentamos fazê-las felizes agora, da melhor forma possível. A impermanência não é negativa. Alguns budistas acham que não devemos apreciar nada, porque tudo é impermanente. Acham que emancipação é livrar-se de tudo e não apreciar nada. Mas quando oferecemos flores a Buda, acho que ele vê a beleza das flores e as aprecia profundamente. Parece que Arittha foi incapaz de distinguir entre apreciar o bem-estar do corpo e da mente, e ser indulgente com os prazeres sensoriais. No Sutra Vimalakirti, o silêncio do leigo Vimalakirti é louvado pelo bodhisattva Manjushri como sendo um "silêncio trovejante" que ecoa distante e amplamente, tendo o poder de romper a cadeia dos apegos e trazer a liberação. É como o rugido de um leão proclamando: "É preciso desapegar-se de todos os ensinamentos verdadeiros, sem falar dos ensinamentos falsos". Este é o espírito que precisamos ter se quisermos entender o Sutra Conhecendo a Melhor Maneira de Pegar uma Serpente. No Sutra da Serpente, Buda nos diz também que o darma é um barco que podemos usar para atravessar o rio a fim de alcançar a outra margem. Seria porém uma asneira continuar a carregar o barco nos ombros depois de ter atravessado o rio. "O barco não é a margem." Estas são as palavras de Buda: "Bhikkhus, já lhes falei muitas vezes sobre a importância de saber quando é tempo de largar o barco e não apegar-se a ele desnecessariamente. Quando o riacho de uma montanha transborda e se transforma em enchente carregando escombros, um homem ou uma mulher que queira atravessá-lo poderia pensar: Qual a maneira mais segura de atravessar esta enchente? Avaliando a situação, a pessoa pode decidir recolher galhos e capim, improvisar uma canoa e usá-la para atravessar para o outro lado. Mas, depois de lá ter chegado, ela pensa: Gastei um bocado de tempo e energia construindo este barco. E um bem precioso, vou carregá-lo comigo enquanto sigo em frente. Uma vez em terra firme, se a pessoa põe a canoa sobre os ombros ou a cabeça, e prossegue carregando-a, vocês acham, Bhikkhus, que seria inteligente?" Os Bhikkhus responderam: "Não, honrado Senhor". Buda disse: "Como teria ela agido mais sabiamente? Ela poderia ter pensado: Esta canoa me ajudou a cruzar as águas a salvo. Agora a deixarei na margem para que alguém possa usá-la. Não seria essa uma coisa mais inteligente a ser feita?" Os Bhikkhus responderam: "Sim, honrado Senhor." Buda pensou: "Tenho dado este ensinamento sobre o barco muitas vezes, para lembrar como é necessário soltar todos os ensinamentos verdadeiros, sem falar dos que não são verdadeiros". O primeiro aspecto da meditação budista é samatha (parar e aquietar), e o segundo é vipasjana (insight, enxergar em profundidade). Existe um ramo do budismo primitivo que se tornou conhecido como vipassana (equivalente, em páli, ao vipasjana em sânscrito). Se estudarmos o budismo Mahayana em profundidade, veremos que vipasjana está bem em seu coração. Muitas práticas concretas foram oferecidas por Buda para ajudar os hodhisattvas a adquirir discernimento e conseguir a transformação, não só para eles próprios mas também para todos os seres. Quando estudamos o Sutra Conhecendo a Melhor Maneira de Pegar uma Serpente, reconhecemos esse primitivo ensinamento de Buda como uma excelente introdução aos ensinamentos do budismo Mahayana. Seu caráter de abertura, de não-apego a pontos de vista e de gracejos, serve bem como porta de entrada ao darma no reino do budismo Mahayana, ajudando-nos a ver claramente que todas as sementes do pensamento e prática Mahayana estavam presentes nos primitivos ensinamentos de Buda. Thich Nhat Hanh NO livro Cultivando a Mente de Amor
imagem: Ascetic – Bhikkhu by VachalenXEON