Meditação é a percepção do mecanismo do “eu”
PERGUNTA: Pareceis rejeitar a ioga, e concordo convosco em que a ioga é muitas vezes praticada como método de fugir a ‘o que é’. Mas, se evitamos a fixação artificial da mente num objeto escolhido e permitimos que a nossa chamada meditação assuma o caráter de investigação, abrangendo todo o campo de ‘o que é’, sem esperar resposta, isso, sem dúvida, é o que costumais recomendar. Não achais, também, que poderíamos executar mais facilmente essa coisa difícil se tivéssemos aprendido a quietar o corpo e a respiração?
KRISHNAMURTI: O interrogante, com efeito, deseja saber “como meditar”: se o quietar o corpo e controlar a respiração não facilitará a meditação, que é o processo de investigação de todo o campo de ‘o que é‘, sem fugir dele. Vejamos, pois, se podemos descobrir “como meditar”. Ora, se tiverdes a bondade de escutar sem focar a atenção numa determinada sentença, numa determinada frase da resposta, poderíamos investigar, juntos, toda a questão de “como meditar”. Para mim, o “como” não constitui, em absoluto, o problema. O problema é: que é meditação? Se não sei o que é meditação, a mera pergunta sobre como meditar nada significa. O que investigo, pois, não é “como meditar”, que método seguir, como estar apercebido de ‘o que é‘, sem fugir, como quedar-me tranquilo, como repetir certas palavras, etc. Não estamos tratando de nada disso. Se sei o que é meditação, então a questão de “como meditar” não constituirá problema algum, naturalmente.
Ora, que é meditação? Como não sabemos o que é meditação, não temos nenhuma ideia sobre como começar. Devemos, pois, abeirar-nos do problema com a mente aberta, não é verdade? Compreendeis? Deveis abeirar-vos dele com uma mente livre, dizendo “Não sei”, e não com uma mente ocupada, perguntando “Como meditar?” Vede: se verdadeiramente prestardes atenção a este problema — o que não significa aderir ao que estou dizendo, mas, sim, experimentar realmente a coisa, ao mesmo tempo que vamos falando — descobrireis por vós mesmo o significado da meditação. Até agora nos temos abeirado do problema com uma atitude de indagação sobre “como meditar”, que sistemas seguir, como respirar, quais as práticas da ioga que convém adotar, etc., etc.; porque, pensando que sabemos o que é meditação, achamos que o “como” nos levará a algo. Mas sabemos de fato o que é meditação? Eu não sei, e penso que vós também não sabeis. Portanto, nós dois temos de abeirar-nos da questão com uma mente que diz “Não sei”, ainda que tenhamos lido centenas de livros e praticado muitas disciplinas da ioga. Vós não sabeis, realmente. Só estais esperando, só estais desejando, querendo chegar, através de determinado padrão de ação, de disciplina, a certo estado. E tal estado pode ser completamente ilusório; pode ser apenas o vosso próprio desejo. E, sem dúvida o é; é a vossa própria “projeção”, como reação à vossa aflitiva existência diária.
Assim, a primeira coisa, a coisa essencial, não é “Como meditar?”, mas, sim, descobrir o que é meditação. Portanto, a mente deve chegar-se a esse problema sem nada saber; e isso é dificílimo. Estamos muito acostumados a pensar que a meditação requer necessariamente um determinado sistema — repetição de palavras, na oração, adoção de uma determinada postura, fixação da mente em certa frase ou imagem, respirar de maneira regular, manter o corpo num estado muito tranquilo, controle completo da mente; estamos bem familiarizados com tudo isso. E pensamos que nos levará a alguma coisa que se acha além da mente, além do mecanismo transitório do pensamento. Pensamos que já sabemos o que desejamos, e agora estamos comparando os diferentes métodos para saber qual é o melhor de todos. A questão relativa a “como meditar” é completamente falsa. Mas posso descobrir o que é meditação? Esta é a questão real. É uma coisa extraordinária o meditar, o saber o que é meditação e, portanto, investiguemo-la. Sem dúvida, a meditação não é a prática de qualquer sistema, achais que é? Pode a minha mente eliminar de todo esta tradição de disciplina, de método? Tradição existente não só aqui, mas também na Índia? Essa eliminação é necessária — não achais? —, visto que não sabemos o que é meditação. Sei como concentrar-me, como controlar, disciplinar, sei o que devo fazer; mas não sei o fim a que se chega com isso. Disseram-me, apenas: “Se fizerdes estas coisas, alcançareis algo”, e, como sou ávido, ponho-me a praticar tais exercícios. Assim, pois, a fim de descobrir o que é meditação, posso eliminar a exigência do método?
A própria investigação desta questão é meditação, não é? Estou meditando no momento em que começo a indagar o que é meditação, em vez de “como meditar?” No momento em que começo a descobrir, por mim mesmo, o que é meditação, a minha mente, como não o sabe, tem de rejeitar tudo o que sabe, o que significa que tenho de pôr à margem o meu desejo de alcançar um estado. Porque o desejo de alcançar é a raiz, é a base da minha busca de método. Tenho conhecido momentos de paz, de serenidade, e o sentimento de um “outro estado”; e desejo alcançá-lo de novo, torná-lo um estado permanente; e por esta razão ponho-me a procurar o “como”. Penso que já sei o que é aquele outro estado, e que um método me conduzirá a ele. Mas, se já sei o que é essa outra coisa, ela então não é a coisa verdadeira, porém, sim, meramente uma projeção de meu próprio desejo. Minha mente, quando está deveras investigando o que é meditação, compreende o desejo de realização, obtenção de resultado e, portanto, está livre dele, do desejo. Por conseguinte, ela se livrou completamente de toda e qualquer autoridade; pois não sabemos o que é meditação, e ninguém pode dizer-nos o que ela é. Minha mente está, toda ela, num estado de “não saber”; não recorre a nenhum método, oração, repetição de palavras, concentração, porquanto percebe que a concentração é simplesmente outra forma de realização. A concentração da mente numa dada ideia, esperando que assim se exercitará para ir mais além, mediante “exclusão”, essa concentração implica também um “estado de saber”. Assim, se eu “não sei”, então todas estas coisas terão de desaparecer; não estou mais pensando em termos de realizar algo, de chegar a um fim. Já não há a ideia de que a acumulação me ajudará a alcançar a outra margem.
Assim, depois de fazer isso, já não descobri o que é meditação? Não há conflito, não há luta; há compreensão da desnecessidade de acumular, compreensão, a todas as horas, e não em dado momento. Meditação, pois, é o processo de completo desnudamento da mente, depuração de toda tendência de acumulação e realização, que constitui a própria natureza do “eu”. A prática de métodos variados só poderá tornar mais forte o “eu”. Podeis disfarçar o “eu”, embelecê-lo, requintá-lo; mas ele é sempre o “eu“.A meditação, pois, é o descobrimento das atividades do “eu”.
Vereis, se vos aprofundardes bastante nisso, que nunca há um momento em que a meditação se torna hábito. Porque o hábito implica acumulação, e, onde há acumulação, há o mecanismo do “eu” a pedir mais, a exigir mais acumulação. Tal meditação está dentro da esfera do conhecido, e nenhuma significação tem, a não ser como método de auto-hipnotismo. A mente só pode dizer “Não sei” — realmente e não apenas verbalmente – depois de haver eliminado, pelo percebimento, pelo autoconhecimento, toda ideia de acumulação. A meditação, pois, significa, “morrermos para nossas acumulações”, e não o alcançar de um estado de silêncio, de tranquilidade. Enquanto a mente for capaz de acumular existirá sempre a ânsia de mais. E o mais exige o sistema, o método, o estabelecimento da autoridade, coisas essas que representam, verdadeiramente, a própria tática do “eu”. Depois de perceber a falácia de tudo isso, a mente se vê num estado de “não saber”. Esta mente pode perceber aquilo que não é mensurável e que só pode manifestar-se momento por momento.
Krishnamurti, Sexta Conferência em Londres, 26 de junho de 1955
fonte Pensar Compulsivo