Para manter sua prática do dharma uma pessoa não precisa renunciar ao mundo

Grandes praticantes alcançaram a iluminação trazendo continuamente consciência para seu trabalho. Durante todo o dia, por doze anos, o mestre indiano Tilopa prensou sementes de gergelim para fazer óleo. Com cada movimento, seu estado desperto permanecia inteiramente presente; não escapava para o passado nem para o futuro, não se perdia em vôos da imaginação. O mesmo acontecia com Togtzepa, um praticante que cavava valas: a cada movimento, ele mantinha o estado desperto.

Semelhantemente, muitos dos oitenta e quatro mahasiddhas da Índia, praticantes altamente realizados, exerciam profissões comuns. Enquanto trabalhavam, eles meditavam. Não importava o que faziam. Como repousavam em seu estado desperto, em meio às atividades a que se dedicavam, eles desenvolveram a capacidade de transformar fogo em água, água em fogo, atravessar paredes e voar pelo ar. Em vez de ficarem sujeitos à realidade ordinária, eles se tornaram senhores dela. Evidentemente, a finalidade da meditação não é transformar água em fogo, mas essas capacidades são subprodutos que aparecem naturalmente quando cortamos nosso apego às percepções ordinárias da realidade.

Certa vez, o filho de um rei foi ter com um iogue para receber instruções sobre meditação. Depois que o iogue lhe mostrou um método, o menino disse, “Isso não dará resultado para mim. Mas eu conheço música. Haveria uma meditação que eu pudesse praticar, enquanto toco meu instrumento?”

“Lembre-se ao tocar”, respondeu o iogue, “que o som é vacuidade, e a vacuidade é som. O som não está além da vacuidade; a vacuidade não está além do som”. Nós também seremos capazes de transformar rapidamente a mente se trouxermos consciência a todas as nossas atividades. Se você está construindo alguma coisa, mantenha a mente presente a cada movimento do martelo. Não deixe que os pensamentos se interponham. Ao escrever, mantenha sua mente junto de cada movimento da caneta ou toque das teclas do computador. Não deixe que ela fique saltando de um lado para outro. Quando você estiver cortando lenha, man- tenha a consciência junto de cada golpe do machado. Seja o que for que estiver fazendo. relaxe a mente. Nesse processo, repousamos suavemente em uma postura de abertura, imersos no que esta acontecendo, totalmente presentes, mas ao mesmo tempo cientes da exibição dos fenômenos. Um adulto que esteja a olhar crianças num parque, nunca perde a noção de que elas estão brincando, O adulto não se fixa, de forma deliberada, na atividade delas, dizendo, “Elas estão brincando, elas estão brincando, elas estão brincando”. Há, porém, um reconhecimento, um conhecimento desse fato.

Com freqüência perdemos esse relaxamento da mente quando estamos completamente mergulhados em nosso trabalho; por exemplo, quando ficamos tão envolvidos com alguma coisa que estamos escrevendo, tal como se estivéssemos dentro das palavras. Ao repousarmos a mente, porém, há um pouco mais de espaço. E como estarmos um pouco fora do que está acontecendo, cientes de que é uma manifestação, uma exibição, mas sem nos distanciarmos e criarmos dualidade.

A vida dos grandes praticantes demonstra, repetidas vezes, que para manter sua prática do dharma uma pessoa não precisa renunciar ao mundo. Tampouco é preciso renunciar ao dharma para se manter envolvido com as atividades do mundo. É possível integrar ambas as coisas em uma única vida. Gradativamente, novas prioridades e um equilíbrio necessário aparecem.

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Você pode adotar o estilo de vida de um eremita, abandonar sua preocupação com comida, roupa, riqueza, amigos, família, lar e mudar-se para uma montanha, dedicando-se inteiramente à meditação. Esse é um modo de praticar perfeitamente válido, Dentro do Vajrayana , porém, há um outro modo. Sua vida externa continua com a forma habitual. Você não deixa sua casa, não renuncia a nada, mas nunca se aparta da virtude, nunca se separa do dharma , da intenção de trazer benefícios ou do estado desperto.

Tilopa disse a seu aluno Naropa, “Você é aprisionado não pelas aparências, mas por seu apego às aparências; portanto, corte esse apego, Naropa”. Nós nos conservamos presos ao samsara não simplesmente porque temos bens materiais, um posição elevada ou amigos, mas porque nos apegamos a essas coisas.

A prática tem que acontecer de forma consistente, bem ali onde a mente está ativa, bem ali junto de cada experiência de desejo, raiva ou alegria — a cada momento. Então sua meditação e o seu trabalho se unem — é uma espécie de casamento. Se você deseja resultados rápidos, não é suficiente meditar apenas uma ou duas horas por dia. Nunca pense, “Agora vou trabalhar; mais tarde vou meditar”. Quem é que sabe se a sua vida vai durar tanto? É difícil adiarmos a visita do senhor da morte. Quando ele aparecer, não lhe dará ouvidos se você disser, “Sinto muito, mas tenho estado muito ocupado e agora preciso meditar. Dê-me só uma semana, um mês ou três anos”.

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Às vezes, quando começam a fazer meditação, algumas pessoas me dizem que são um caso perdido, que é impossível controlar seus pensamentos. Eu lhes asseguro que isso é um sinal de melhora. A mente delas sempre foi revolta; acontece apenas que, finalmente, elas estão notando isso. No passado, elas deixavam sua mente vagar livremente, seguindo as correntes de pensamento que surgissem, fossem quais fossem. Agora, porém, que têm maior percepção do que ocorre na mente, elas podem começar a mudar. Você pode se queixar de que meditação não é fácil. Mas lembre-se de que você está conduzindo sua mente como um cavalo selvagem para dentro do curral do estado desperto. Você terá certeza de que sua prática está dando resultado se não estiver mais tão dominado por suas emoções e confusão, se trouxer para todas as suas ações, onde quer que esteja, uma qualidade de abertura, de relaxamento e uma intenção de compaixão, permanecendo consciente dos movimentos da mente e da natureza de todas as coisas que acontecem à sua volta.

Trecho de “Portões da Prática Budista” de Chagdud Tulku Rinpoche

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