A entrega, ou seja, o abandono de qualquer resistência mental e emocional ao que é, também é um portal para o Não Manifesto. A razão disso é simples, já que a resistência interior nos isola das outras pessoas, de nós mesmos e do mundo à nossa volta, fortalecendo a sensação de separação da qual o ego depende para sobreviver. Quanto maior a sensação de separação, maior a nossa dependência do manifesto, do mundo das formas separadas. E quanto maior a ligação com o mundo das formas, mais dura e impenetrável será a nossa identificação com a forma. O portal é fechado e somos afastados da dimensão interior, a dimensão do profundo. No estado de entrega, a nossa identificação com a forma se dissolve e se reveste de uma espécie de “transparência” e, assim, o Não Manifesto consegue brilhar através de nós.
Depende de nós abrirmos um portal em nossas vidas que nos conduza a um acesso consciente ao Não Manifesto. Entre em contato com o campo de energia do seu corpo interior, esteja intensamente presente, deixe de se identificar com a sua mente, entregue-se àquilo que é. Podemos usar todos esses portais, mas só precisamos de um deles.
——————–
Pratico meditação, frequento seminários, leio muito sobre espiritualidade, em busca de um estado de não resistência. Mas, se você me perguntar se encontrei a verdadeira paz interior, minha resposta teria que ser “não”. Por que não a encontrei? O que mais posso fazer?
Você ainda está procurando lá fora e não consegue escapar do modo de busca. Talvez o próximo seminário lhe traga a resposta, talvez aquela nova técnica. Diria a você: não busque a paz. Não busque nenhum outro estado além daquele em que você está agora, do contrário, vai criar um conflito interno e uma resistência inconsciente. Perdoe a si mesmo por não estar em paz. No momento em que você aceitar completamente a sua intranquilidade, ela se transformará em paz. Qualquer coisa que você aceite completamente vai lhe levar até lá, vai levar você até a paz. Esse é o milagre da entrega.
——————–
O SIGNIFICADO DA ENTREGA
A ACEITAÇÃO DO AGORA
P: Você mencionou a palavra “entrega” algumas vezes. Essa ideia não me agrada. Soa um pouco fatalista. Se aceitarmos sempre as coisas como elas são, não vamos fazer nenhum esforço para melhorá-las. Para mim, o significado de progresso, tanto em nossa vida pessoal quanto em coletividade, é não aceitarmos as limitações do presente e nos empenharmos para ir além, para superá-las e criar coisas melhores. Se não tivéssemos agido assim, ainda estaríamos vivendo em cavernas. Como conciliar essa entrega com a mudança e a realização das coisas?
R: Para muitas pessoas, a entrega talvez tenha conotações negativas, como uma derrota, uma desistência, uma incapacidade de se reerguer das ciladas da vida, certa letargia, etc. A verdadeira entrega, entretanto, é algo completamente diferente. Não significa suportar passivamente uma situação qualquer que nos aconteça e não fazer nada a respeito, nem deixar de fazer planos ou de ter confiança para começar algo novo. A entrega é a sabedoria simples mas profunda de nos submetermos e não de nos opormos ao fluxo da vida. O único lugar em que podemos sentir o fluxo da vida é no Agora. Isso significa que se entregar é aceitar o momento presente sem restrições e sem nenhuma reserva. É abandonar a resistência interior àquilo que é. A resistência interior acontece quando dizemos “não” para aquilo que é, através do nosso julgamento mental e de uma negatividade emocional. Isso se agrava especialmente quando as coisas “vão mal”, o que significa que há um espaço entre as exigências ou expectativas rígidas da nossa mente e aquilo que é. Esse é o espaço do sofrimento. Se você já tiver vivido bastante tempo, certamente saberá que as coisas “vão mal” com muita frequência. É precisamente nesses momentos que a entrega tem de ser praticada, caso queiramos eliminar o sofrimento e as mágoas da nossa vida. A aceitação daquilo que é nos liberta imediatamente da identificação com a mente e nos religa com o Ser. A resistência é a mente.
A entrega é um fenômeno puramente interior. Isso não quer dizer que não possamos fazer alguma coisa no campo exterior para mudar a situação. Na verdade, não é a situação completa que temos de aceitar quando falo de entrega, mas apenas o segmento minúsculo chamado o Agora.
Por exemplo, se você estiver atolado na lama, não tem de dizer: “Está bem, me conformo de estar atolado nessa lama.” Resignação não quer dizer entrega. Você não precisa aceitar uma situação indesejável ou desagradável na sua vida. Nem precisa se iludir e dizer que não há nada errado em estar atolado na lama. Nada disso. Você tem completa consciência de que deseja sair dali. Então reduz a sua atenção ao momento presente, sem atribuir a essa situação nenhum rótulo mental. Isso significa que não existe nenhum julgamento do Agora. Em consequência, não existe nenhuma resistência, nenhuma negatividade emocional. Você aceita a “existência” do momento. A seguir, toma uma atitude e faz tudo o que puder para sair da lama. Chamo essa atitude de ação positiva. Funciona muito mais do que uma ação negativa, que decorre da raiva, do desespero ou da frustração. Até que alcance o resultado desejado, você continua a praticar a entrega ao se abster de rotular o Agora.
Vou fazer uma analogia visual para ilustrar o ponto que estou sustentando. Você está andando por uma estrada à noite, com uma neblina cerrada, mas possui uma lanterna potente que corta a neblina e cria um espaço estreito e nítido na sua frente. A neblina é a sua situação de vida, que inclui o passado e o futuro. A lanterna é a sua presença consciente, e o espaço nítido é o Agora.
Não se entregar endurece a forma psicológica, a casca do ego, e assim cria uma forte sensação de separação. O mundo e as pessoas à sua volta passam a ser vistos como ameaças. Surge uma compulsão inconsciente para destruir os outros através do julgamento e uma necessidade de competir e dominar. Até mesmo a natureza vira sua inimiga e o medo passa a governar a sua percepção e a interpretação das coisas. A doença mental conhecida como paranoia é apenas uma forma ligeiramente mais aguda desse estado normal, embora disfuncional, da consciência.
A resistência faz com que tanto a sua mente quanto o seu corpo fiquem mais “pesados”. A tensão se manifesta em diferentes partes do corpo, que se contrai para se defender. O fluxo de energia vital, essencial para o funcionamento saudável do corpo, fica prejudicado. Algumas formas de terapia corporal podem ser úteis para restaurar esse fluxo, mas a menos que você pratique a entrega na sua vida diária, essas coisas só podem lhe proporcionar um alívio temporário, porque a causa, o padrão de resistência, não foi ainda dissolvida.
Porém, existe alguma coisa dentro de você que não é afetada pelas circunstâncias transitórias que constroem a sua situação de vida e a que você só tem acesso através da entrega. Trata-se da sua vida, do seu próprio Ser, que existe no eterno domínio do presente. Encontrar essa vida é “a única coisa necessária” de que Jesus falava. Se a sua situação de vida é insatisfatória ou mesmo intolerável, somente através da entrega você vai conseguir quebrar o padrão inconsciente de resistência, que permite a permanência dessa situação.
A entrega é perfeitamente compatível com tomar uma atitude, iniciar uma mudança ou atingir objetivos. Mas, no estado de entrega, uma energia totalmente diferente flui naquilo que fazemos. A entrega nos religa com a fonte de energia do Ser, e, se as nossas ações estiverem impregnadas com o Ser, elas se tornam uma alegre celebração da energia da vida, que nos aprofunda cada vez mais no Agora. Através da não resistência, a qualidade da nossa consciência e, portanto, a qualidade do que estivermos fazendo ou criando aumenta sem medidas. Os resultados vão falar por si mesmos e refletir essa qualidade. Podemos chamar isso de “ação de entrega”. Não é um trabalho tal como nós conhecemos por milhares de anos. À medida que mais seres humanos despertarem, a palavra trabalho vai desaparecer do nosso vocabulário e talvez seja criada uma nova palavra para substituí-la.
A qualidade da sua consciência neste momento é que vai determinar o tipo de futuro que você vai viver. Portanto, entregar-se é a coisa mais importante que você pode fazer para provocar uma mudança positiva. Qualquer outra coisa que você fizer será secundária. Nenhuma ação positiva pode surgir de um estado de consciência em que não existe entrega.
——————–
Não confunda entrega com atitudes do tipo “não ligo mais para nada”. Essas atitudes estão cheias de negatividade na forma de um ressentimento oculto, portanto não se trata de entrega, mas de uma resistência disfarçada. Ao se entregar, dirija a sua atenção para dentro para verificar se existe algum traço de resistência que tenha ficado no seu interior. Fique bem alerta ao fazer isso, do contrário um resíduo de resistência pode ter ficado escondido em algum cantinho escuro, na forma de um pensamento ou de uma emoção desconhecida.