“Qual é a natureza exata da religião? É ela um obstáculo no caminho da vida espiritual?”

Esse é um trecho do livro “Conversas com a Mãe” que faz parte do ensinamentos de Sri Aurobindo.

“Qual é a natureza exata da religião? É ela um obstáculo no caminho da vida espiritual?”

A religião pertence à mente superior da humanidade. É o esforço da mente superior do homem de se aproximar, na medida de sua capacidade, de algo além dela, de alguma coisa a que a humanidade dá o nome de Deus ou Espírito, Verdade ou Fé, Conhecimento ou Infinito, uma espécie de Absoluto que a mente humana não pode alcançar e mesmo assim tenta fazê-lo. A religião pode ser divina na sua origem primária; na sua natureza presente não é divina, mas humana. Na verdade, melhor seria falar de religiões do que de religião, porque as religiões feitas pelos homens são inúmeras. Estas diferentes religiões, mesmo que não tenham tido a mesma origem, foram feitas, a maior parte delas, do mesmo modo. Sabemos como a religião cristã começou a existir. Não foi certa-mente Jesus o responsável pelo que chamamos Cristianismo, mas alguns homens eruditos e muito engenhosos que uniram seus esforços e a moldaram tal qual a vemos. Não havia nada de divino no modo como foi formada, e também não há nada de divino no modo como funciona. E contudo o pretexto ou ocasião para a sua formação foi, sem dúvida, alguma revelação do que poderia se chamar um Ser Divino, um Ser que veio de algum lugar, trazendo de uma região mais alta um certo Conhecimento e Verdade para a Terra. Ele veio e sofreu por sua verdade; mas muito poucos entenderam o que o que ele disse, muito poucos se interessaram em achar e conservar-se fiéis à Verdade pela qual ele sofreu. Buda retirou-se do mundo, sentou-se em meditação e descobriu um caminho que libertava o homem do sofrimento e misérias terrestres, de toda a doença e morte, desejo e fome. Ele viu uma verdade que se esforçou para expressar e comunicar aos discípulos e seguidores, que se reuniam à sua volta. Mas mesmo antes dele morrer, seu ensinamento já começara a ser deformado e distorcido. Foi apenas depois de seu desaparecimento que o Budismo se firmou como uma religião plenamente desenvolvida, baseada no que se supõe ter sido dito por Buda e na suposta significação de seus enunciados. Mas bem cedo tam-bém, porque os discípulos e os discípulos dos discípulos não podiam concordar com o que o Mestre tinha dito ou queria significar com suas declarações, come-çou a aparecer um batalhão de seitas e sub seitas no corpo da religião-mãe: um Caminho do Sul, um Caminho do Norte, um Caminho do Extremo-Oriente, cada um proclamando ser o único, o original, a imaculada doutrina de Buda.

A mesma sorte teve também o que Cristo ensinou, que também foi trans-formado, do mesmo modo, num conjunto de religiões organizadas. Diz-se mui-tas vezes que, se Jesus voltasse, não seria capaz de reconhecer o que ensinara nas formas que foram impostas, e que se Buda descesse de novo e visse o que foi feito de seu ensinamento, voltaria correndo, desanimado, para o Nirvana! Todas as religiões têm, cada uma, a mesma história a contar. A ocasião de seu nascimento é a vinda ao mundo de um grande instrutor; ele vem e revela, e é a encarnação da Verdade Divina. Mas os homens agarram-na, fazem comércio dela, transformam-na quase em uma organização política. A religião é equipada por eles com um governo e uma administração e leis, com seus credos e dogmas, suas regras e regulamentos, seus ritos e cerimônias, tudo imposto aos seus adeptos, tudo absoluto e inviolável. Como o Estado, a religião assim constituída também distribui recompensas ao leal e inflige punições àqueles que se revoltam ou se desviam, ao herético e ao renegado.

O primeiro e principal artigo de fé destas religiões estabelecidas e formais é sempre: “Minha religião é a verdade suprema, a única; todas as outras são falsas ou inferiores”. Porque, sem esse dogma fundamental, nenhuma religião baseada em crenças poderia subsistir. Se você não estiver convencido e não proclamar que só você possui a verdade única ou a verdade mais alta, não será capaz de impressionar as pessoas e fazê-las afluir em multidão.

Essa atitude é natural à mentalidade religiosa; mas é precisamente isto que faz da religião um empecilho no caminho da vida espiritual. Os artigos e dogmas da religião são coisas produzidas pela mente, e se você se apegar a eles e se fechar num código de vida delineado para você, você não sabe e não pode conhecer a verdade do espírito que se estende além de todos os códigos e dogmas, vasta, ampla e livre. Quando você se detém num credo religioso e se liga a ele, tomando-o pela única verdade do mundo, você pára o progresso e a expansão de seu ser interior. Mas se observar a religião de um outro ângulo, ela não precisa ser sempre um obstáculo a todos os homens. Se você a encarar como uma das mais altas atividades da humanidade, e se puder ver nela as aspirações dos homens, sem ignorar a imperfeição de tudo que é de fabricação humana, ela pode bem ser uma espécie de ajuda para você se aproximar da vida espiritual. Considerando a religião como um espírito sério e cuidadoso, você pode tentar descobrir qual a verdade que se encontra ali, qual aspiração que nela se esconde, que inspiração divina sofreu transformação e deformação pela mente e organização humanas, e com uma apropriada atitude mental, pode conseguir da religião mesmo como ela é, lançar alguma luz no seu caminho e proporcionar algum apoio ao seu esforço espiritual.

Em todas as religiões achamos invariavelmente um certo número de pessoas que possuem uma grande capacidade emocional e estão cheias de aspiração real e ardente, porém têm uma mente muito simples e não sentem necessidade de se aproximar do Divino pelo conhecimento. Para estas naturezas, a religião tem sua utilidade, e é mesmo necessária a elas, pois através de formas externas, como as cerimônias da Igreja, ela oferece uma espécie de apoio e serve de auxílio à aspiração espiritual interior. Em cada religião existem alguns que desenvolveram alta vida espiritual. Não foi a religião que lhes deu espiritualidade; foram eles que colocaram a sua espiritualidade dentro da religião. Colocada em qual-quer outro lugar, nascidos em qualquer outro culto, teriam lá achado e vivido a mesma vida espiritual. É a própria capacidade deles, é algum poder de seu interior e não a religião que professam, que os fez o que são. Este poder em sua natureza é tal que a religião não se torna uma escravidão ou um cativeiro. Mas como não têm uma mente forte, clara e ativa, eles precisam acreditar neste ou naquele credo como absolutamente verdadeiro e consagrar-se a ele sem qual-quer pergunta perturbadora ou dúvida. Tenho encontrado, em todas as religiões, pessoas desta espécie e seria um crime perturbar sua fé. Para elas, a religião não é um obstáculo. Um obstáculo para aqueles que podem ir mais longe, no entanto ela pode ser uma ajuda para quem não pode, porém que é capaz de avançar até um certo ponto no caminho do Espírito.

A religião tem sido a instigadora tanto das piores coisas como das melhores. Se as guerras mais ferozes têm sido travadas e as perseguições mais hediondas promovidas em seu nome, também ela tem estimulado heroísmos supremos e auto sacrifícios por sua causa. Juntamente com a filosofia, ela marca o limite que a mente humana alcançou nas suas mais altas atividades. É um impedimento e uma cadeia, se você for escravo de sua forma exterior. Entretanto, se você sou-ber como usar sua substância interna, pode ser o seu trampolim para o reino do Espírito.

Aquele que professa uma fé particular ou descobriu alguma verdade tende a pensar que apenas ele achou a Verdade, total e integral. Tal é a natureza huma-na. Uma mistura de falsidade parece necessária para os seres humanos mante-rem-se em seus pés e seguir seu caminho. Se a visão da verdade lhes fosse dada de repente, poderiam ser esmagados sob seu peso.

Cada vez que algo da Verdade e da Força Divina desce para se manifestar na terra, opera-se uma mudança na atmosfera terrestre. Aqueles que são receptivos ao contato desta descida, são despertados para alguma inspiração, algum toque, algum começo de visão. Se eles forem capazes de conservar e expressar corretamente o que receberam, diriam: “Uma grande força desceu; estou em contato com ela e o que eu entender dela, contar-lhes-ei”. Mas a maior parte deles não é capaz disto, porque têm mentes limitadas. Eles se tornam ilumina-dos, possuídos, por assim dizer, e gritam: “Eu tenho a Verdade Divina, possuo-A total e integral”. Existem na terra, pelo menos, duas dúzias de Cristos e talvez outros tantos Budas; a Índia sozinha pode fornecer uma quantidade incalculável de Avatares, para não falar de manifestações menores. Apresentada desta maneira, a coisa toda parece grotesca, mas se se olhar o que está por trás, não é tão estúpida como parece á primeira vista. A verdade é eu a personalidade humana entrou em contato com um ser, um poder, e sob a influência da educação e da tradição, ela o chama de Buda ou de Cristo, ou de qualquer outro nome familiar. É difícil verificar se era o Buda mesmo ou o verdadeiro Cristo com quem houve o contato, mas também ninguém pode afirmar que a inspiração que ela recebeu não veio da mesma fonte que inspirou o Cristo ou o Buda. Estes receptáculos humanos podem muito bem ter recebido a inspiração de alguma fonte semelhante. Se eles fossem modestos e simples, ficariam satisfeitos de dizer o que aconteceu e nada mais; diriam: “Recebi esta inspiração deste ou daquele Grande Ser”. Mas em vez disso, proclamam: “Eu sou aquele Grande Ser”. Conheci um que afirmava ser ao mesmo tempo Cristo e Buda! Ele recebera algo, experimentara a verdade, vira a Divina Presença em si e nos outros. Mas a experiência foi muito forte para ele, a verdade muito grande. Tornou-se meio maluco e no dia seguinte passeava pelas ruas proclamando que nele o Cristo e o Buda tornaram-se um.

A Consciência Divina única está trabalhando aqui através de todos estes seres, preparando seu caminho através de todas estas manifestações. Hoje em dia está trabalhando aqui na terra mais poderosamente que nunca. Existem alguns que são tocados por ela, de algum modo ou de outro, mas deformam o que recebem, fazem-no propriedade sua. Outros sentem o toque mas não podem suportar a força e enlouquecem sob a pressão. Mas alguns têm a capacidade de receber e a força de suportar, e são eles que se tornarão receptáculos do conhecimento pleno, seus instrumentos e agentes escolhidos.

Se você quiser avaliar o real valor da religião na qual você nasceu ou foi cria-do ou ter uma perspectiva correta do país ou sociedade à qual pertence por nascimento, se quiser descobrir como é relativo o ambiente específico onde aconteceu de você ser projetado ou confinado, tem apenas que viajar ao redor da terra e ver que o que você pensa ser bom é considerado mau em outro lugar e o que é tido como mau em um lugar é acolhido como bom em outro. Todos os países e todas as religiões são edificadas sobre um aglomerado de tradições. Em todas elas você encontrará santos e heróis, e personalidades grandes e poderosas, bem como gente mesquinha e malvada. Você perceberá então como é ridículo dizer: “Como eu fui educado nesta religião, ela é a única verdadeira; como eu nasci neste país, ele é melhor de todos”. Desta maneira pode-se ter a mesma pretensão para sua família: “Como eu vim desta família, que viveu neste lugar por tantos anos ou tantos séculos, estou preso às suas tradições; somente elas são o ideal”.

As coisas têm um valor intrínseco e tornam-se-lhe reais unicamente quando você as houver adquirido por sua livre escolha, e não quando lhes tiverem sido impostas. Se quiser certeza de sua religião, você deve escolhê-la; se quiser ter certeza de seu país, você deve escolhê-lo; se quiser ter certeza de sua família, mesmo esta você deve escolher. Se aceitar, sem discussão, o que lhe tiver sido dado pelo Acaso, você não pode nunca saber o que é bom ou mau para você, se esta é a coisa verdadeira para a sua vida. Recue um passo de tudo que forma o seu ambiente natural ou hereditário, construído ou imposto à força a você pelo processo mecânico da Natureza cega; recolha-se e olhe tranqüila e desapaixonadamente as coisas. Avalie-as, escolha-as livremente. Então você pode dizer com uma verdade interior: “Esta é a minha família, este é o meu país, esta é a minha religião”.

Se nos aprofundarmos um pouco dentro de nós, descobriremos que em cada um existe uma consciência que tem vivido através de eras, manifestando-se numa multidão de formas. Cada um já nasceu em vários países diferentes, já pertenceu a muitas nações distintas, já seguiu inúmeras religiões variadas. Por que devemos aceitar a última como a melhor? As experiências reunidas por nós em todas estas muitas vidas, em diferentes países e religiões diversas, estão armazenadas nesta continuidade interior de nossa consciência, que persiste através dos nascimentos. Existe nela personalidades múltiplas criadas por experiências passadas e quando nos tornamos conscientes desta multidão dentro de nós, torna-se impossível falar de uma forma particular de verdade, como a única verdade, de um país, como nosso único país, de uma religião como a única religião verdadeira. Existem pessoas que nasceram num país, apesar dos elementos dominantes de suas consciências pertencerem obviamente a outro. Já encontrei alguns, nascidos na Europa, que eram evidentemente indianos; outros, nascidos em corpos indianos, que eram indiscutivelmente europeus. No Japão encontrei alguns que eram indianos, outros europeus. E se qualquer um deles fosse para o país, ou entrasse para a civilização com a qual tivesse afinidade, achar-se-ia perfeitamente em casa.

Se o seu objetivo é ser livre, na liberdade do Espírito, você deve se desfazer de todos os vínculos que não sejam a verdade interior de seu ser, mas que provém de hábitos subconscientes. Se quiser consagrar-se de maneira total, absoluta e exclusiva ao Divino, você deve fazê-lo com toda integridade; não deve deixar pedaços seus amarrados aqui e ali. Você pode objetar que não é fácil cortar radicalmente, para sempre, as suas amarras. Mas você nunca olhou para trás e observou as mudanças que lhe ocorreram no curso de uns poucos anos? Quando isso acontece, quase sempre você se pergunta como foi que pôde se sentir como se sentiu ou agiu do modo como agiu em certas circunstâncias; às vezes você nem se reconhece na pessoa que era há apenas dez anos atrás. Como pode, então, apegar-se ao que era ou ao que é, ou como pode fixar de antemão o que pode ou não acontecer no futuro?

Todas as suas relações devem ser novamente construídas sobre uma liberdade de escolha interior. As tradições nas quais você vive ou foi educado foram-lhe impostas pela pressão do ambiente ou pela mente geral ou pela escolha de outros. Há um elemento de compulsão na sua aquiescência. A própria religião tem sido imposta aos homens; quase sempre é sustentada pela influência de um medo religioso ou por uma ou outra ameaça espiritual. Não pode haver nenhuma imposição deste gênero em sua relação com o Divino; ela deve ser livre, o resultado da escolha de sua mente ou de seu coração, seguida com entusiasmo e alegria. Que união é essa em que se treme e se diz: “Eu tenho obrigação, não posso fazer de outro modo”. A verdade é evidente por si mesma, e não tem que ser imposta ao mundo. Ela não tem necessidade de ser aceita pelo homem, por-que é autoexistente; ela não depende do que dizem as pessoas ou de sua ade-são a ela. No entanto, aquele que está fundando uma religião necessita de mui-tos seguidores. A força e a grandeza da religião são julgadas pelo homem, de acordo com o número de seus seguidores, apesar da grandeza real não estar nisto. A grandeza da verdade espiritual não está em números. Conheci o chefe de uma nova religião, filho de seu fundador, e ouvi-o dizer certa vez que tal ou qual religião levou tantas centenas de anos para ser construída, e uma outra, outras tantas centenas, ao passo que a sua, no decorrer de 50 anos, já tinha mais de quatro milhões de seguidores! “E assim você vê”, acrescentou, “quão grande é a nossa religião!” As religiões podem medir a sua grandeza pelo número de seus crentes, mas a Verdade permanecerá sempre Verdade, mesmo que não tenha um único seguidor. O homem médio é atraído por aqueles que fazem grandes exibições; ele não vai aonde a Verdade está se manifestando silenciosamente. Aqueles que fazem grandes ostentações necessitam apregoar e anunciar, pois de outro modo não poderiam atrair grande número de pessoas. O trabalho que é feito sem nenhuma preocupação pelo que as pessoas pensam dele não é tão conhecido, não atrai multidões facilmente. Porém a Verdade não precisa de anúncios; ela não se esconde, mas também não se proclama. Ela se contenta em manifestar-se sem olhar os resultados, nem procurando aprovações ou evitando desaprovação, não atraída ou perturbada pela aceitação ou negação do mundo.

Quando você vem para Yoga, deve estar pronto para ter todas as suas formações mentais e todas as suas armações vitais despedaçadas. Você deve estar preparado para ficar suspenso no ar, sem nada para sustentá-lo, além de sua fé. Você terá que esquecer completamente seu passado e seus apegos, arrancá-los de sua consciência e nascer outra vez, livre de toda espécie de escravidão. Não pensar no que você era, mas no que você aspira ser; seja integralmente aquilo que você quer realizar. Vire as costas ao seu passado morto e olhe direto para o futuro. Sua religião, seus país, sua família está lá: é o DIVINO.

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