Todo o universo é mudança, e a própria vida não é senão aquilo que tu acreditas que é

3. Os homens procuram a solidão no deserto, na praia ou nas montanhas —um sonho que tu próprio tanto tens acarinhado. Mas tais fantasias são totalmente impróprias de um filósofo, uma vez que em qualquer altura que queiras podes recolher-te dentro de ti próprio. Não há para o homem refúgio algum mais silencioso e mais tranquilo do que a própria alma; sobretudo para quem possua, em si mesmo, recursos que apenas precisa de contemplar para assegurar uma paz de espírito imediata —paz que é apenas outro nome para um espírito bem organizado. Aproveita, pois, este retiro com frequência e renova-te continuamente. Traça para a tua vida regras sumárias, mas que abranjam o fundamental; o retorno a elas bastará para remover todas as aflições e te reenviar sem desgaste para os deveres a que tens de voltar.

Afinal, o que é que te aflige? Os vícios da humanidade? Lembra-te da doutrina que diz que todos os seres racionais são criados uns para os outros; que a tolerância é parte da justiça; e que os homens não são malfeitores intencionais. Pensa na miríade de inimizades, suspeitas, animosidades e conflitos que se extinguiram juntamente com o pó e as cinzas dos homens que os experimentaram; e não te aflijas mais.

Ou é a parte que te coube em sorte no universo que te agasta? Recorda uma vez mais o dilema, «se não uma sábia Providência, então um simples amontoado de átomos», e pensa na profusão de indícios de que este mundo é como que uma cidade. São os males do corpo que te afligem? Pensa que o espírito só tem que destacar-se e apreender os seus próprios poderes, para não mais se envolver com os movimentos da respiração, sejam eles suaves ou ásperos. Em resumo, recorda tudo aquilo que aprendeste e com que concordaste a respeito da dor e do prazer.

Ou é a ilusão da celebridade que te perturba? Não percas de vista a rápida investida do esquecimento e os abismos de eternidade que nos esperam e nos precedem; repara como são ocos os ecos do aplauso, como são inconstantes e sem discernimento os juízos dos pretensos admiradores, e que insignificante é a arena da fama humana. Porque a terra inteira é apenas um ponto, e a nossa própria morada, um minúsculo canto nela; e quantos lá há que te vão louvar, e que tipo de homens são eles?

Não te esqueças, pois, de te retirares para o pequeno campo do teu eu. Sobretudo, nunca lutes nem te afadigues; sê, antes, dono de ti próprio, e encara a vida como homem, como ser humano, como cidadão e como mortal. Entre as verdades em que seria bom que pensasses estão estas duas: primeiro, que as coisas nunca podem atingir a alma, mas apenas ficar inertes fora dela, de modo que o desassossego só pode resultar de fantasias interiores; e segundo, que todos os objectos visíveis mudam num instante e deixam de existir. Pensa nas inúmeras mudanças em que tu próprio tomaste parte.

Todo o universo é mudança, e a própria vida não é senão aquilo que tu acreditas que é.

Do Livro Meditações de Marco Aurélio

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