É a atividade de nossa mente, da conceituação a respeito de tudo que nos
acontece, que constitui o problema.
Não há nada de errado com as conceituações em si, mas, quando consideramos que as opiniões sobre algum evento são uma espécie qualquer de verdade absoluta, esquecendo-nos de que são opiniões, então sofremos.
Esse é o sofrimento falso.
“Um décimo de uma polegada de diferença, e céu e terra estão distanciados.”
Quero acrescentar aqui uma consideração; não faz a menor diferença o que está acontecendo. Pode ser muito injusto ou muito cruel. A todos nós acontecem coisas injustas, mesquinhas, cruéis. Nosso hábito é pensar: “Mas que coisa terrível!”. Revidamos, opomo-nos ao que acontece. Tentamos fazer como mencionou Shakespeare: “Apresentar armas contra um conjunto de problemas e, opondo-nos a eles, eliminá-los”.
Seria ótimo se realmente “as flechas e as atiradeiras da sina mais ultrajante” pudessem cessar. Todos os dias somos confrontados com acontecimentos que nos parecem completamente injustos e sentimos que a única maneira de enfrentar um ataque é revidando-o. Nosso revide está em nossas mentes. Armamo-nos com nossa raiva e nossas opiniões, nossas justíssimas considerações, como se estivéssemos envergando um colete aprova de balas. Pensamos que desse modo estamos do melhor jeito possível para viver. O máximo que conseguimos é intensificar as distâncias, aumentar a raiva e fazer a nós e a todas as outras pessoas infelizes. Portanto, se essa abordagem não funciona, como enfrentarmos o sofrimento da vida?
Há uma história sufi a esse respeito.
Havia há muito tempo um rapaz, cujo pai era um dos maiores professores daquela época, respeitado e reverenciado por todos. E o rapaz, tendo crescido ouvindo as palavras de grande sabedoria do pai, sentia que já sabia tudo o que havia por aprender. Mas seu pai lhe disse: “Não. Eu não posso lhe ensinar o que você precisa saber. A pessoa que quero que você ouça é um professor camponês, um analfabeto, um lavrador”. O rapaz não gostou nem um pouco, mas foi assim mesmo e viajou a pé, meio indisposto, até chegar à aldeia onde morava o camponês. Aconteceu que nesse momento o professor, montado em seu cavalo, estava saindo de sua fazenda e indo para outra; nisso, viu o rapaz encaminhando-se até ele.
Quando o rapaz chegou perto o suficiente e curvou-se diante dele, o professor olhou-o de cima a baixo e falou: “Não basta”.
Ouvindo isso, o rapaz ajoelhou-se e o camponês repetiu: “Não basta”. O rapaz curvou-se diante dos joelhos do cavalo e o professor disse outra vez: “Não basta”.
Então, o rapaz curvou-se mais uma vez, chegando às patas do cavalo, tocando o casco. Nisso, o camponês comentou: “Agora você pode voltar. Você teve seu treinamento”. Isso foi tudo.
Portanto (lembrando-nos da definição da palavra “sofrer”), até que nos curvemos e suportemos o sofrimento da vida, sem nos opormos a ele, mas absorvendo-o e sendo-o, não conseguiremos enxergar o que a vida é. De modo algum, isso implica passividade, inação; implica, ao contrário, a ação provinda de um estado de completa aceitação. Até mesmo o termo “aceitação” não é muito preciso; quero dizer, simplesmente ser o sofrimento. Uma completa abertura, uma completa vulnerabilidade à vida é (para nossa grande surpresa) o único meio satisfatório de se viver.
Claro que se vocês forem um pouquinho parecidos comigo, irão evitá-lo tanto quanto possível, porque uma coisa é falar do sofrimento e outra, extremamente difícil, é fazer o que estou dizendo. Entretanto, quando o fazemos, sabemos bem no fundo quem somos e quem todos são, e desaparece a barreira entre nós e os outros. Nossa prática, ao longo de nossa vida, é isso: a qualquer momento específico, temos um ponto de vista rígido ou uma posição inflexível a respeito da vida, que inclui algumas coisas e exclui outras. Podemos mantê-lo durante um certo tempo, porém, se nossa prática for sincera, ela mesma abalará as certezas inabaláveis de nossas opiniões e não seremos mais capazes de mantê-la. Quando começarmos a questionar nossos pontos de vista, sentiremos inquietação, luta, aborrecimento, nesse esforço para chegarmos a um acordo com as novas percepções relativas a nossa vida. Por muito tempo, talvez, lutemos contra as novas informações e as neguemos. Faz parte da prática. Mas, um dia, sentiremos que estamos dispostos a vivenciar nosso sofrimento em vez de lutar contra ele. Quando o fizermos, nossas referências e opiniões sofrerão abruptas modificações. Então, mais uma vez, nossas novas perspectivas irão sustentar-se por um certo tempo, até que se reinicie o ciclo.
Mais uma vez surge a inquietação e começamos a lutar, a ir contra o que nos acontece. Cada vez que fazemos isso, cada vez que entramos no sofrimento e nos entregamos à situação, nossa visão de vida se amplia. É como escalar uma montanha. Cada passo em direção ao alto permite-nos enxergar mais, e essa visão não nega as coisas que ficaram embaixo -ela as inclui -, mas se torna maior a cada etapa da subida, a cada estágio do esforço. Quanto mais enxergamos, mais abrangente nossa visão, mais saberemos o que fazer, qual ação encetar.
Como falo com inúmeras pessoas, a coisa principal que observo é que elas não compreendem o sofrimento. Claro que nem sempre eu também o entendo e tento evitá-lo como qualquer um. Contudo, ter um entendimento teórico do que é o sofrimento e como praticar com ele torna-se um instrumento de extrema utilidade, em especial no sesshin. Podemos entender melhor o que ele é e como usá-lo em sua melhor característica, efetuando de fato uma prática.
A mente que cria o falso sofrimento está constantemente funcionando nos sesshins.
Não há quem não esteja sob seu jugo. Na noite passada constatei-a em mim mesma.
Podia ouvir minha mente se queixando: “O quê?! Outro sesshin! Você acabou de fazer um, no último fim de semana!”. Nossas mentes funcionam dessa maneira. Depois, quando enxergo esse absurdo, lembro-me de perguntar: “O que de fato quero para mim e para os outros?”. Diante disso, essa mente se aquieta de novo.
Assim, quando fazemos zazen, recusamos com paciência a dominação desses pensamentos e dessas opiniões a respeito de nós, dos acontecimentos, das pessoas e, constantemente, estamos de volta à única realidade segura: o momento presente.
Ao fazermos isso, nosso foco e o samadhi se aprofundam. Por conseguinte, no zazen, a renúncia do bodhisattva é essa prática, é esse afastarmo-nos da fantasia e dos sonhos pessoais, penetrando na realidade do presente. Nos sesshins, cada momento que praticamos desse jeito nos dá aquilo que não podemos obter de nenhuma outra maneira: o conhecimento direto de nós mesmos. É quando ficamos de frente para esse momento, de um modo direto, é quando encaramos o sofrimento. Enfim, quando realmente nos sentimos dispostos a penetrar em sua dinâmica, sê-lo apenas; nesse instante, sabemos quem somos, o que é tudo o mais, e ninguém precisa nos dizer coisa alguma.
Mas às vezes as pessoas comentam: “É difícil demais”. No entanto, não praticar absolutamente nada é muito, mas muito mais difícil. Estamos mesmo nos enganando, quando não praticamos. Portanto, tenham bastante clareza a respeito de vocês mesmos, acerca do que deve ser feito para encerrar o sofrimento; e vejam também que, praticando com essa espécie de coragem, podemos fazer com que os outros não
tenham medo, não sofram. Conseguimos isso através de uma prática persistente,inteligente e paciente. Jamais alcançamos esse resultado com nossas queixas, amargura e raiva; e não estou sugerindo que suprimamos esses sentimentos. Se aparecerem, observem-nos; não é preciso suprimi-los. Retornem, então de imediato, para a respiração, e o corpo; voltem ao estarem sentados, pura e simplesmente.
Quando fazemos isso, não há aquele que, ao final de um sesshin, não tenha encontrado as recompensas oferecidas pelo verdadeiro sentar. Sentemo-nos dessa maneira.
Jocko Beck no livro Sempre Zen