É compreensível que duvide que um retiro desse gênero pudesse resultar em algo muito radical ou profundo. O retiro seguiu, em termos gerais, a tradição da «meditação de consciência plena», um tipo de meditação que começava a ganhar força no mundo ocidental e que nos anos subsequentes se tornou dominante. Na sua descrição mais comum, a consciência plena (aquilo que a meditação de consciência plena visa cultivar) não é muito profunda nem invulgar. Viver de consciência plena é prestar atenção, estar ciente do que acontece aqui e agora, bem como vivencia‑lo de forma clara, direta, sem a influência das várias distorções mentais. É desfrutar do momento presente.
Esta é uma descrição rigorosa da consciência plena, tanto quanto possível. Mas não é assim tão rigorosa. A «consciência plena», na sua aceção mais popular, é apenas o início da consciência plena.
Além disso, é um início enganoso nalguns aspetos. Se estudar os escritos budistas antigos, não encontrará muitas exortações a desfrutar do momento presente — mesmo nos textos que contêm a palavra sati, o termo que foi traduzido como «consciência plena». Na verdade, esses escritos por vezes parecem transmitir uma mensagem muito diferente. O texto budista antigo conhecido como Os Quatro Pilares da Consciência Plena — o mais próximo que existe de uma Bíblia da Consciência Plena — recorda‑nos que o nosso corpo está «cheio de vários tipos de coisas impuras» e instrui‑nos a meditar sobre ingredientes corporais como «fezes, bílis, ranho, pus, sangue, suor, gordura, lágrimas, sebo, saliva, muco, fluido das articulações, urina». Insta‑nos a imaginar o nosso corpo «morto há um dia, dois dias, três dias — inchado, lívido e em decomposição».
Não conheço nenhum livro campeão de vendas sobre meditação de consciência plena chamado Desfrutar das Fezes. E nunca ouvi nenhum professor de meditação recomendar que meditasse sobre a minha bílis, ranho ou pus, nem sobre o cadáver em decomposição que serei um dia. O que é apresentado atualmente como uma tradição antiga de meditação não passa de uma versão seletiva de uma tradição antiga de meditação, por vezes cuidadosamente embelezada.
Não é escândalo nenhum. Não há nada de errado no facto de as interpretações modernas do budismo serem seletivas (criativas até, por vezes) na forma como o apresentam. Todas as tradições espirituais evoluem, adaptando‑se ao tempo e ao lugar, e os ensinamentos budistas que atualmente possuem seguidores nos Estados Unidos e na Europa resultam dessa evolução.
O mais importante, para os nossos propósitos, é que esta evolução — a evolução que produziu uma versão distintamente ocidental, do século xxi — não cortou a ligação entre a prática atual e o pensamento antigo. A meditação de consciência plena moderna não é exatamente o mesmo que a antiga, mas as duas partilham uma base filosófica. Se seguir o suficiente a lógica subjacente a ambas, chegará a uma conclusão dramática: estamos, em termos metafóricos, a viver no Matrix [matriz, em português: fonte ou origem]. Por mais mundana que a meditação de consciência plena possa por vezes parecer, é uma prática que, quando seguida rigorosamente, nos poderá deixar entrever o que Morpheus disse que o comprimido encarnado revelaria — nomeadamente «até onde vai a toca do coelho».
Nesse primeiro retiro de meditação, tive algumas experiências bastante fortes — suficientemente fortes para me fazer ver até onde vai a toca do coelho. Por isso, li mais sobre filosofia budista, falei com peritos em budismo, fui a mais retiros de meditação e estabeleci uma prática diária de meditação.
Tudo isso me ajudou a perceber ainda melhor o motivo de Matrix ter passado a ser conhecido como um «filme darma». Apesar de a psicologia evolutiva já me ter convencido de que, por natureza, as pessoas estão bastante iludidas, o budismo afinal pintava um cenário ainda mais dramático. Na visão do budismo, a ilusão afeta as perceções e os pensamentos quotidianos de formas ainda mais subtis e generalizadas do que eu imaginava. E de formas que faziam sentido para mim. Ou seja, parecia‑me que este tipo de ilusão poderia ser explicado como o resultado natural de um cérebro que fora estruturado pela seleção natural. Quanto mais examinava o budismo, mais radical parecia, mas, quanto mais o examinava à luz da psicologia moderna, mais plausível parecia. O Matrix da vida real, aquele em que estamos realmente inseridos, começou a parecer mais semelhante ao do filme — talvez não tão alucinante, mas extremamente enganoso e até opressivo, algo de que a humanidade precisa de fugir com urgência.
A boa notícia é o outro aspeto em que passei a acreditar: se quisermos fugir do Matrix, a prática e a filosofia budistas proporcionam uma forte esperança. O budismo não é o único a fazer essa promessa. Existem outras tradições espirituais que abordam a condição humana com perspicácia e sabedoria. Porém, a meditação budista, com a sua filosofia subjacente, aborda essa condição de forma extremamente direta e aprofundada.
O budismo apresenta um diagnóstico explícito do problema e a sua cura. Essa cura, quando funciona, não só traz felicidade como também clareza de visão — mostra a verdade concreta sobre as coisas ou, pelo menos, algo muito mais perto dela do que aquilo que obtemos através da nossa visão quotidiana.
Algumas pessoas que começaram a praticar meditação em anos recentes fizeram‑no sobretudo por motivos terapêuticos. Praticam uma redução de stress com base na consciência plena ou concentram‑se num problema pessoal específico. Podem não fazer ideia de que o tipo de meditação que estão a praticar pode ser uma atividade profundamente espiritual e que tem a capacidade de transformar a sua visão do mundo. Sem terem consciência, estão perto do limiar de uma escolha básica, uma escolha que só elas poderão fazer. Como Morpheus disse a Neo: «Só te posso mostrar a porta. Tu é que tens de a atravessar. »
Este livro é uma tentativa de mostrar a porta aos leitores, de lhes dar uma ideia do que os espera do outro lado e explicar (de um ponto de vista científico) por que motivo o que os espera do outro lado se reveste de mais argumentos para ser real do que o mundo com que estão familiarizados.
Trecho de Por que o budismo funciona, de Robert Wright (edição de Portugal)