MINDFULNESS, A ATENÇÃO PLENA e a Meditação

MINDFULNESS, A ATENÇÃO PLENA

Sempre é agora. A frase parece banal, mas é verdadeira. Não tanto para a neurologia, uma vez que nossa mente é construída sobre camadas de inputs*** que, sabemos, têm de ser recebidos em momentos diferentes.

Mas é verdadeira quando falamos sobre a experiência consciente. A realidade da vida é sempre no agora. E perceber isso, como veremos, é libertador. Aliás, acho que não há nada mais importante a se compreender se quisermos ser felizes neste mundo.

Entretanto, passamos a maior parte da vida esquecidos dessa verdade, fechando os olhos para ela, fugindo dela, repudiando-a. E o horror é que somos bem-sucedidos. Conseguimos evitar ser felizes enquanto nos esforçamos para nos tornar felizes: satisfazemos um desejo após outro, eliminamos nossos medos, nos agarramos ao prazer, nos esquivamos da dor — pensando, interminavelmente, sobre qual será a melhor forma de manter tudo funcionando a contento. Como consequência, passamos a vida muito menos satisfeitos do que poderíamos ser. Com frequência, não apreciamos algo que temos até que o percamos. Ansiamos por experiências, objetos, relacionamentos e depois nos cansamos deles. Mas o anseio persiste. Falo por experiência própria, é claro.

Como remédio para essa enrascada, muitos ensinamentos espirituais pedem que acalentemos ideias sem fundamento sobre a natureza da realidade, ou, no mínimo, que passemos a gostar da iconografia ou dos rituais de uma religião ou de outra. Mas nem todos os caminhos passam pelo mesmo terreno acidentado. Existem métodos de meditação que não requerem nenhum artifício nem suposições improcedentes.

Para os iniciantes, costumo recomendar uma técnica chamada vipassana (“olhar dentro de algo com clareza”, em páli), proveniente da mais antiga tradição do budismo Teravada. Uma das vantagens da vipassana é que se trata de uma técnica que pode ser ensinada de modo totalmente secular. Em geral, os especialistas na prática adquirem seu treinamento num contexto budista, e a maioria dos centros de retiro nos Estados Unidos e na Europa ensina a filosofia budista associada a ela. No entanto, esse método de introspecção pode ser transposto sem empecilhos para qualquer contexto secular ou científico. (O mesmo não se pode dizer da prática de se cantar para o senhor Krishna batendo num tambor.) É por isso que a vipassana vem sendo amplamente estudada e adotada por psicólogos e neurocientistas.

A qualidade da mente cultivada na vipassana é quase sempre descrita em inglês como “mindfulness”.**** A literatura sobre seus benefícios psicológicos é expressiva. Não há nada de sobrenatural na atenção plena. Ela é apenas um estado de atenção clara, sem julgamento e sem distrações aos conteúdos da consciência, agradáveis ou desagradáveis. Provou-se que cultivar essa qualidade da mente reduz a dor, a ansiedade e a depressão, apura a função cognitiva e produz até mesmo melhoras na densidade da substância cinzenta em regiões do cérebro relacionadas ao aprendizado e à memória, à regulação emocional e à autopercepção. Examinaremos mais detidamente a neurofisiologia da atenção plena em outro capítulo.

Mindfulness é uma tradução inglesa da palavra sati, da língua páli. O termo tem várias acepções na literatura budista, mas, para nossos objetivos, a mais importante é “atenção plena”. A prática foi descrita pela primeira vez no Satipatthana Sutta, que faz parte do Cânone Páli. Como muitos textos budistas, o Satipatthana Sutta é muito repetitivo, e, para quem não se devota com avidez ao estudo do budismo, sua leitura é demasiado maçante. Entretanto, quando comparamos textos do tipo com a Bíblia ou com o Alcorão, a diferença é inconfundível: Satipatthana Sutta não é uma coleção de mitos, superstições e tabus antigos; é um guia empírico rigoroso para se libertar a mente do sofrimento.

Buda descreveu quatro fundamentos da atenção plena, que ele ensinou como “o caminho direto para a purificação dos seres, para a superação da tristeza e da lamentação, para o desaparecimento da dor e do pesar, para o alcance do verdadeiro caminho, para a realização do Nibbana” (Nirvana, em sânscrito). Os quatro fundamentos da atenção plena são o corpo (respiração, mudanças na postura, atividades), as sensações (de prazer, desconforto e neutralidade), a mente (em particular, seus humores e atitudes) e os objetos da mente (que incluem os cinco sentidos, mas também outros estados mentais, como vontade, tranquilidade, arrebatamento, serenidade e até mesmo a própria atenção plena). Trata-se de uma lista singular, ao mesmo tempo redundante e incompleta — um problema que se agrava pela necessidade de traduzir a terminologia páli. Mas a mensagem óbvia do texto é que toda a experiência de uma pessoa pode se tornar terreno da contemplação. A instrução para o meditador é apenas que preste atenção “ardorosamente”, “com percepção total” e “livre de cobiça e pesar pelo mundo”.

Não há nada de passivo na atenção plena. Poderíamos mesmo dizer que ela expressa um tipo específico de paixão — uma paixão por discernir o que é subjetivamente real a cada momento. Trata-se de um modo de cognição que é, acima de tudo, isento de distrações, permeável e (em última análise) não conceitual. Estar em atenção plena não é uma questão de se pensar mais claramente sobre experiências; é o ato de vivenciá-las com mais clareza, inclusive o surgimento dos próprios pensamentos. A atenção plena é uma percepção vívida do que quer que apareça em nossa mente ou em nosso corpo — pensamentos, sensações, estados de humor —, sem que nos apeguemos ao agradável ou que nos esquivemos do desagradável. Um dos aspectos fortes dessa técnica de meditação, do ponto de vista secular, é que ela não requer que adotemos quaisquer artificialidades culturais ou crenças injustificadas. Exige apenas que prestemos muita atenção ao fluxo das experiências em cada momento.

O principal inimigo da atenção plena — ou de qualquer prática meditativa — é nosso hábito bastante condicionado de nos distrairmos por pensamentos. O problema não são os pensamentos em si, mas o estado de pensarmos sem saber que estamos pensando. Todos os tipos de pensamento podem ser objetos perfeitamente apropriados para a atenção plena. Mas, nas primeiras etapas de nossa prática, o surgimento de um pensamento será mais ou menos sinônimo de distração — ou seja, de fracasso ao meditar. A maioria das pessoas que pensa que está meditando está apenas pensando de olhos fechados. Ao praticar a atenção plena, contudo, podemos despertar do sonho do pensamento discursivo e começar a ver cada imagem, ideia ou fragmento de linguagem que surgem e desaparecem sem deixar vestígio. O que resta é a própria consciência, com as visões, sons, sensações e pensamentos que a acompanham e aparecem e mudam a cada instante.

Quando se começa a praticar meditação, a diferença entre a experiência comum e o que acabamos por considerar “atenção plena” não é muito clara; precisamos de algum treinamento para distinguir entre estar perdido em pensamentos e ver os pensamentos como eles são. Nesse sentido, aprender a meditar é como adquirir qualquer outra habilidade. São necessárias milhares de repetições para se dar um bom soco no boxe ou para se tirar música das cordas de um violão. Com a prática, a atenção plena se torna um hábito de atenção bem construído, e a diferença entre a atenção plena e o pensamento comum se tornará cada vez mais clara. Por fim, começará a parecer que você desperta repetidamente de um sonho e se vê em segurança na cama. Por mais terrível que seja o sonho, o alívio é instantâneo. É difícil, porém, permanecer desperto durante mais de alguns segundos a cada vez.

Meu amigo Joseph Goldstein, um dos melhores professores de vipassana que conheço, compara essa mudança da atenção à experiência de estar totalmente imerso em um filme e de repente perceber que você está sentado no cinema, assistindo a um mero jogo de luzes na parede. Sua percepção não muda, mas o encanto se desfaz. A maioria de nós passa todos os momentos de vigília perdida no filme de nossas vidas. Enquanto não nos damos conta de que existe uma alternativa ao encantamento, ficamos totalmente à mercê das aparências. Repito: a diferença que descrevo não é uma questão de se alcançar uma nova compreensão conceitual ou de se adotarem novas crenças sobre a natureza da realidade. A mudança chega quando vivenciamos o momento presente antes que os pensamentos surjam.

Buda ensinou a atenção plena como a resposta apropriada à verdade de dukkha, palavra páli que se costuma traduzir, com um tanto de equívoco, por “sofrimento”. Uma tradução melhor seria “insatisfação”. O sofrimento pode não ser inerente à vida, mas a insatisfação o é. Ansiamos pela felicidade duradoura em meio à mudança: nosso corpo envelhece, objetos valorizados se quebram, prazeres diminuem, relacionamentos fracassam. Nosso apego às coisas boas da vida e a aversão às ruins representam uma negação da realidade, e sua inevitabilidade leva a sentimentos de insatisfação. A atenção plena é uma técnica para se atingir a serenidade em meio ao fluxo, nos permitindo simplesmente tomar consciência da qualidade da experiência em cada momento, seja ela agradável, seja desagradável. Pode parecer uma receita para a apatia, mas não precisa ser. Na verdade, é possível ter atenção plena — e, portanto, estar em paz com o momento presente — até mesmo enquanto se trabalha para tornar o mundo melhor.

A meditação da atenção plena é demasiado simples de se descrever, mas não é fácil de se praticar. O verdadeiro domínio da prática pode requerer um talento especial e toda uma vida de devoção à tarefa, mas uma transformação genuína na percepção do mundo está ao alcance da maioria de nós. A prática é a única coisa que nos conduzirá ao êxito. As instruções simples que você encontrará adiante são análogas às instruções para se andar numa corda bamba — que, suponho, seriam mais ou menos assim:

1. Encontre um cabo horizontal capaz de sustentar seu peso.

2. Fique em pé em uma das extremidades.

3. Avance pondo um pé diretamente em frente ao outro.

4. Repita.

5. Não caia. Evidentemente, as etapas de 2 a 5 requerem alguma tentativa e erro.

Por sorte, os benefícios do treinamento de meditação surgem muito antes que se domine a técnica. E cair, para os nossos propósitos, acontece quase sem cessar, toda vez que nos perdemos em pensamentos. Mais uma vez, o problema não está nos pensamentos em si, mas no estado de pensar sem a consciência plena de se estar pensando.

Como todo meditador logo descobre, a distração é a condição normal da mente. A maioria de nós despenca da corda bamba a cada segundo, seja ao resvalar alegremente para um devaneio, seja ao mergulhar no medo, na raiva, na autoaversão e em outros estados mentais negativos. A meditação é uma técnica para o despertar. O objetivo é sair do transe do pensamento discursivo e deter, por reflexo, o apego ao agradável e a aversão ao desagradável, para que possamos desfrutar de uma mente não perturbada por preocupações, apenas aberta como o céu e cônscia, sem esforço, do fluxo da experiência no presente.

Como meditar

1.Sente-se confortavelmente, com a coluna ereta, em uma cadeira ou de pernas cruzadas numa almofada.

2. Feche os olhos, respire fundo algumas vezes e sinta os pontos de contato entre seu corpo e a cadeira ou o chão. Repare nas sensações associadas a estar sentado: de pressão, calor, formigamento, vibração etc.

3. Aos poucos, tome consciência do processo de respirar. Preste atenção aos locais onde você sente que o ar se movimenta de modo mais definido — nas narinas ou no sobe e desce do abdome.

4. Permita que sua atenção incida na simples sensação de respirar. (Você não precisa controlar a respiração. Apenas deixe que o ar entre e saia de modo natural.)

5. Toda vez que se perder em pensamentos, volte delicadamente a atentar para a respiração.

6. Ao se concentrar no processo de respirar, você também perceberá sons, sensações corporais ou emoções. Apenas observe esses fenômenos à medida que eles aparecerem na consciência, depois retorne à respiração.

7. No momento em que notar que se perdeu em pensamentos, observe o pensamento presente como um objeto da consciência. Depois volte a prestar atenção à respiração ou a quaisquer sons ou sensações que surjam em seguida.

8. Continue desse modo até poder apenas testemunhar todos os objetos da consciência — visões, sons, sensações, emoções e até os próprios pensamentos — conforme eles surgem, mudam e passam. Os principiantes geralmente acham útil ouvir instruções desse tipo em voz alta durante uma sessão de meditação. Postei em meu site meditações dirigidas com várias durações.

Do livro Despertar – Um guia para a espiritualidade sem religião – Sam Harris